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21 April 2025

milton bituca nascimento (2024)

 

O sucesso ou fracasso (essas palavras tão vazias) de um filme não são capazes de alterar o lugar que Milton Nascimento ocupa na cultura brasileira. Bituca não precisa que o cinema celebre sua obra, que vive (viverá) através dos diferentes intérpretes que a cantaram (e cantarão), que mora no imaginário das gerações que a ouviram (e a ouvirão), no Brasil e além.

Recentemente, ao menos dois documentários sobre o cantor e compositor chegaram aos cinemas: Nada será como antes: a música do Clube da Esquina (Ana Rieper, 2024) — sobre a formação da turma que mais tarde gravou o clássico álbum de 1972 —, e Milton Bituca Nascimento, de Flávia Moraes, que tem como ponto de partida a turnê "A última sessão de música", anunciada como a despedida de Milton dos palcos, aos 80 anos de vida (hoje 82) e 60 de carreira. Com acesso aos ensaios, camarins e ao palco, impressiona a quantidade de material disponível. O que não diminui (e talvez acentue) certa falta de rumo, perceptível desde seus primeiros minutos, quando a montagem alterna trechos da turnê, cenas recriadas com um ator mirim interpretando Milton criança, diferentes depoimentos sobre o artista, além de uma narrativa em voz over que oscila entre a hagiografia, o clichê e a uma poesia forçada, abusando do decalque de (alguns diriam "referências a") trechos de letras de Milton e seus parceiros. A qualidade do texto fica patente quando nem a narração de Fernanda Montenegro consegue salvá-lo do tom de brainstorm publicitário, com suas platitudes, suas frases feitas, suas perguntas retóricas, tudo envolto em um papel de embrulho com a tinta da homenagem.

A quantidade (e qualidade) dos entrevistados salta aos olhos: no Brasil, o suprassumo dos músicos da geração mais próxima a Milton: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, João Bosco, Djavan, Ivan Lins, Simone. Entre os internacionais, Quincy Jones, Wayne Shorter, Herbie Hancock, Paul Simon, Pat Metheny, a portuguesa Carminho, entre outros. Nem lá nem cá, temos Sérgio Mendes, músico brasileiro mais conhecido (e reconhecido) nos EUA que em seu próprio país. Para completar, os companheiros de Milton da época do álbum "Clube da Esquina": Lô e Márcio Borges, Beto Guedes, Toninho Horta, Wagner Tiso. E também músicos da banda de "A última sessão de música" e de gerações mais jovens, como Esperanza Spalding, Criolo, Mano Brown, Djonga, Maria Gadu. Ao que parece, ninguém se negou a dar seu depoimento para um fime sobre Bituca.

Tamanha quantidade obriga o documentário, com suas duas horas de duração, a se transformar em um imenso videoclipe, recorrendo inclusive ao split screen (a telas dividida) para dar conta de acomodar tanto material. Mas uma maior duração, ou mesmo sua hipotética transformação em uma série, dificilmente resolveria a falta de rumo sentida desde os primeiros momentos da projeção. Afinal, do que trata Milton Bituca Nascimento? Entre tantas respostas possíveis, se destaca a tentativa de monumentalização de um artista, com todos os problemas inerentes ao processo. Por exemplo, a música, que poderia estar no centro de tudo, aparece sempre pela metade, às vezes como detalhe ou mera ilustração.

Nenhuma das canções executadas é ouvida em sua integridade, e a interrupção parece jogar um balde de água fria no espectador que talvez gostasse de capturar algo mais dos shows de despedida de Bituca. Assim, é preciso se contentar com as entrevistas e a narração em voz over, que tentam construir, menos que ideias, consensos, figuras de linguagem que, após serem insistentemente repisadas, terminam esvaziadas de significado e transformadas em lugares-comuns. Assim, metade da plêiade de entrevistados afirma que Milton (e sua música) seriam "inclassificáveis" — mas qualquer tentativa de pensar de maneira mais aprofundada o que isso quer dizer acaba se perdendo no caminho. Ali, alguém fala no uso inusitado das diatônicas (mas o termo é demasiado técnico para o público leigo e o pensamento não se conclui). Depois, Caetano Veloso (sempre ótimo em sintetizar ideias em expressões contundentes) é quem se sai melhor ao afirmar que "a melhor explicação de Milton é o mistério" — o que poderia resumir tudo, mas, no fundo, não resume nada.

Com tanto material à disposição, a sensação de excesso convive com a impressão de que o documentário poderia render muito mais. E efetivamente rende, em um de seus melhores momentos, quando Criolo e Mano Brown recitam, suas vozes reunidas na montagem, a letra de "Morro velho":

No sertão da minha terra, fazenda é o camarada que ao chão se deu
Fez a obrigação com força, parece até que tudo aquilo ali é seu
Só poder sentar no morro e ver tudo verdinho, lindo a crescer
Orgulhoso camarada, de viola em vez de enxada

Filho do branco e do preto, correndo pela estrada atrás de passarinho
Pela plantação adentro, crescendo os dois meninos, sempre pequeninos
Peixe bom dá no riacho de água tão limpinha, dá pro fundo ver
Orgulhoso camarada, conta histórias pra moçada

Filho do senhor vai embora, tempo de estudos na cidade grande
Parte, tem os olhos tristes, deixando o companheiro na estação distante
Não esqueça, amigo, eu vou voltar, some longe o trenzinho ao deus-dará

Quando volta já é outro, trouxe até sinhá mocinha prá apresentar
Linda como a luz da lua que em lugar nenhum rebrilha como lá
Já tem nome de doutor, e agora na fazenda é quem vai mandar
E seu velho camarada, já não brinca, mas trabalha.

A inflexão da voz e o gestual dos artistas demonstram o reconhecimento, em seus próprios corpos, do racismo denunciado na letra. Ambos sabem que poderiam ser eles mesmos a metade dos "velhos camaradas" que já não brinca, mas trabalha. A negritude de Milton (e a forma como esse traço ancestral aparece em sua obra) surge neste momento como chama viva a alimentar músicos de uma geração mais jovem. Aqui, não há um clichê vazio (como em vários momentos da narração ou no apelo a certo elemento "inclassificável" na obra do compositor), apenas o apontamento de algo específico: como pessoa negra, Milton enfrentou preconceitos. Seu sucesso e influência ajudou outras pessoas negras a seguirem suas vocações musicais, contrariando a situação retratada em "Morro velho" — o fato de que, ainda que a infância pareça apagar as diferenças, a cor da pele ainda determina quem pode, de um lado, estudar e ter nome de doutor e, do outro, a quem está destinado o trabalho manual na terra da fazenda.

A arte de Milton pode ser "inclassificável" para os limitados (e limitantes) rótulos comerciais das lojas de discos e das plataformas de streaming, que hesitam em colocá-la na prateleira do jazz, da world music ou da MPB. Na verdade, sua obra possui imensa força estética e política, de alta voltagem poética, coisa que aparece em sua plenitude neste trecho do documentário. Coisa que não precisa ser "classificada", mas que pode ser pensada, sentida, debatida.

Ao invés de tentar construir uma estátua em praça pública, o filme de Moraes ganharia ao mostrar como a música de Milton é capaz de provocar reações como as de Criolo e Mano Brown. Uma música entranhada, de diferentes maneiras, no imaginário e na percepção de quem tem (e terá) o privilégio de conhecê-la, o que pode implicar seja na denúncia do racismo estrutural, seja em uma percepção mística ou religiosa, seja na busca de uma identidade mineira, seja em sua inesgotável inventividade harmônica e melódica etc.

Menos homenagem hagiográfica (e mais mergulho nos detalhes e insterstícios da própria obra) e o filme perderia a pompa, o caráter oficialesco, a aparência de monumento público, ganhando, por outro lado, a possibilidade de mergulhar no universo das canções de Milton Bituca Nascimento.

O cinema não será capaz de modificar a importância dessa obra. Mas Milton Nascimento, sua vida, sua arte e seu legado ainda estão por merecer um filme que se arrisque, apesar de toda a dificuldade, a enfrentá-los de frente.

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24 March 2025

emilia pérez (2024)

 

Como falar de Emilia Pérez sem considerar a expectativa provocada por seus materiais publicitários, suas treze indicações ao Oscar, as polêmicas envolvendo sua atriz principal, comentários lidos ou escutados aqui e ali? Ainda que elementos para além (ou aquém) do próprio filme não devessem importar, ao menos em um primeiro momento, é inevitável que a reação à obra sejam, digamos assim, "recalibradas" no choque entre as expectativas criadas e a efetiva visão do filme. Mesmo indesejáveis, é difícil evitar as expectativas. Cada vez mais rara é a chance de se assistir a um filme do qual nada se sabe, simplesmente entrar a esmo em uma sala escura qualquer, sabendo, quando muito, apenas o título do cartaz...

Uma expectativa contrariada: apesar do que se diz, Emilia Pérez não é um filme sobre pessoas transgênero. Ainda que o centro da trama seja a redesignação sexual do chefe do tráfico Manitas del Monte — após a qual passará a se chamar Emilia Pérez —, toda a situação é muito distinta da vivida pela imensa maioria das pessoas que fizeram ou anseiam fazer semelhante procedimento. Com recursos financeiros "ilimitados" (como afirma em uma cena), Manitas tem meios para conseguir o melhor tratamento médico possível. E, talvez ainda mais fora da realidade, em momento algum alguém se refere a Emilia como uma mulher trans. Como se a personagem transcendesse essa condição, como se fosse possível sair do masculino e ir diretamente ao feminino. Tornar-se não uma "mulher trans", mas apenas uma "mulher", destituída da história, da memória (e das dores) da transição.

Não se cobra aqui "realismo" de uma obra com tantos elementos tomados emprestados do musical, sua atmosfera oscilando entre a "realidade" dos fatos narrados e um espaço-tempo puramente teatral, com grande liberdade cênica, onde habitam o canto e a dança. Emilia Pérez, ao "esquecer" que a protagonista é uma pessoa trans, apenas endossa esta não é a questão central, mas sim a troca de identidade, entender o que sobrevive em alguém a partir do momento em que se resolve tornar-se um outro. Como em outras obras que tratam do tema, ainda que a velha identidade pareça superada, algo sempre resta do passado. Algo que em algum momento será revelado e que, de uma hora para outra, mostrará como algo da antiga identidade pode mostrar indelével.

Emilia Pérez — é claro — tem seu momento de revelação, assim como outro grande filme feito sobre a reconstrução de uma identidade (realizado por um dos diretores que melhor trabalharam esse tema), A History of Violence (Marcas da violência, 2005), de David Cronenberg, em que o personagem de Viggo Mortensen, de uma hora para outra, tem sua identidade colapsada em frente à sua família enquanto seu passado, que ele imaginava superado, retorna. Não é coincidência o mesmo ator ter interpretado Sigmund Freud em outro filme do diretor, A Dangerous Method (Um método perigoso, 2011). Como o recalque, o passado nunca se apaga por completo. E, em dado momento, imerge à consciência.

Emilia Pérez mostra como o contemporâneo exige que cada pessoa construa uma identidade — e os problemas envolvidos nesse processo. Assim, ganha outra dimensão a cena no tribunal, logo no início, em que somos apresentados à advogada Rita Mora Castro (Zoe Saldanha). Frente ao juiz, enquanto seu chefe repete, como se fossem dele, as palavras que ela passou a noite escrevendo, Rita mostra uma identidade partida: apesar de seu talento ser a principal razão da absolvição do acusado, ela mesma não acredita em sua inocência. Entre o que Rita representa e o que de fato acredita, há um abismo — única razão (além, é claro, do dinheiro) para que aceitar a missão de organizar a cirurgia do capo traficante.

Não só Manitas / Emilia, mas também Rita quer construir para si uma nova identidade. Mas, diferentemente daquela, a advogada não tem tanta certeza de onde quer chegar. Em um momento, ela parece resumir alguns dos dilemas das mulheres contemporâneas: quando bem-sucedidas, mas sem família ou filhos, é como se algo lhes faltasse (ao avesso, quando com família e filhos, mas sem uma carreira profissional, outra coisa lhes falta). A exigência de ser bem-sucedida em "todos" os aspectos da vida cria uma espécie de armadilha da qual a maioria das mulheres contemporâneas (cis ou trans) acaba prisioneira. Sempre em falta, com mais pratos a equilibrar que tempo para conseguir equilibrá-los.

Com Rita não seria diferente: bem-sucedida, sente falta de uma relação amorosa, de uma família, de filhos. De forma parecida, ainda que a cirurgia tenha sido bem-sucedida, Emilia sente-se incompleta e deseja recuperar o contato com seus filhos e, talvez — ao menos durante um momento —, com sua esposa, que, assim como o resto do mundo, acredita na história da morte de Manitas. Mesmo morto o traficante, seu amor paternal sobrevive. Rendendo-se a ele, Emilia decide procurar as crianças para, sob outro nome, recuperar algum tipo de relação com elas.

Também por isso os elementos de musical cabem tão bem a Emilia Pérez. Território da irrealidade e da fantasia, o musical exacerba a teatralidade e a máscara das situações. Se o mundo é um grande teatro, cada pessoa precisa aprender a representar seu papel (seus papéis). Alguns precisam apagar uma parte de seus corpos e assim se reconstruirem, se reinventarem. De forma menos drástica, outros precisam assumir atitudes e submeter-se a certas expectativas; cumprir certos rituais e repetir, de forma às vezes mecânica, um sem número de frases feitas, que parecem criadas outrem. Desejar desejos que nem sempre parecem ser seus.

No México, onde se passa grande parte da trama, Emilia Pérez foi rechaçado por retratar o problema do narcotráfico (e suas consequências) de maneira supostamente superficial. (Também não ajuda muito que o diretor do filme seja francês e que ninguém do elenco principal seja mexicano.) Mas, novamente, como exigir "realismo" de um musical? Começamos falando de expectativas e é disso que se trata: como esperar, de um filme que dialoga de perto com o musical, uma visão mais "realista" de seus temas?

Ainda que trate de questões às vezes duras, o tom de fantasia que atravessa Emilia Pérez impede, entre outras coisas, que a personagem sofra qualquer preconceito ou violência pelo fato de ser uma mulher trans. De maneira similar, as marcas do melodrama (por exemplo, na revelação da antiga identidade ou na possibilidade de redenção da personagem) conferem um sabor supostamente "latino-americano" à trama.

Musical marcado por toques de "realismo-mágico" (como entendido por um europeu que parece deixar de lado tanto o realismo quanto a mágica) e de latinidade (também pensada a partir de clichês), Emilia Pérez parte de duas questões prementes (as pessoas trans e as vítimas do narcotráfico) para tocar nos problemas de identidade (e identitários) tão presentes no contemporâneo. O que ajuda a explicar seu fascínio e seu alcance, ainda que o filme de Audiard não chegue a se aprofundar nessas questões.

Como se trata de uma grande fantasia muscial, território em que tudo pode acontecer, habitado pela música, pela dança, pelas luzes e cores, por mirabolantes movimentos de câmera, talvez os problemas de Emilia Pérez possam afinal ser perdoados.

Ou não (a depender da expectativa da plateia).

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12 March 2025

anora (2024)

 

Anora é um filme fraturado em duas partes: na primeira, prevalece o sonho e o hedonismo. É quando Ani, durante seu trabalho como dançarina erótica e eventual prostituta em uma casa de strip-tease em Nova York, conhece o jovem Vanya, filho de bilionários russos. De forma perdulária, entre uma festa e outra, uma cena de sexo e outra, o relacionamento entre ambos vai se estreitar cada vez mais. Até que, na segunda parte, teremos o reverso do sonho, quando um sentimento de opressão e violência estará sempre presente, ora explícito, ora subterrâneo.

Em ambos os momentos do filme, Sean Baker demonstra seu gosto pela velocidade. Na primeira parte, as coisas não demoram a acontecer. Como se a narrativa, ainda que não seja atropelada ou pula etapas, tomasse atalhos. Tudo acontece sem espera, sem demora. Poderíamos dizer: sem maturação. Assim, torna-se marcante o pedido de casamento de Vanya, que acontece talvez cedo demais — e, depois da improvisada cerimônia em Las Vegas, e durante a segunda parte de Anora, podemos ter a sensação de que é tarde demais. Tarde demais para voltar atrás, tarde demais para esperar que a relação entre Ani e Vanya amadurecesse (se é que amadureceria), tarde demais para evitar as consequências dos atos realizados de forma impulsiva e impensada.

Na segunda parte do filme, a velocidade se encontra menos no desenrolar da narrativa (há muita espera durante a busca pelo paradeiro de Vanya) que nos gestos e nas falas do elenco. Há embates verbais que, inegavelmente agressivos, podem também soar divertidos. Há muita comédia física, com os personagens entrando em brigas e disputas corporais, se acidentando e inclusive vomitando — o que coloca o filme no tênue limite entre o cômico e o patético, entre o grotesco e o hilário. Velocidade que condiz com certa tradição do cinema nova-iorquino e seu gosto pelos personagens noturnos (de Cassavetes e Scorsese aos irmãos Safdie, passando pela verborragia de Woody Allen), mas que remete também às screwball comedies (ou comédias amalucadas) da era de ouro de Hollywood, sendo Levada da breca (Bringin' Up Baby, Howard Hawks, 1939), com Katherine Hepburn e Cary Grant, um dos exemplos mais representativos.

O fato do ponto de vista narrativo em Anora ser o mesmo da personagem central apenas reforça a sensação de fratura. Se, durante a primeira parte do filme, parte da plateia pode ser levada, talvez ingenuamente, a acreditar que Vanya, ainda que infantil e irresponsável, pode ser também sincero e quiçá bondoso, é preciso dizer que a própria Anora é muito esperta e a todo tempo mede os possíveis ganhos de sua situação. Talvez menos por caráter que por necessidade, menos por calculismo que por sobrevivência, ela não deixa de ser uma arrivista que, após conhecer Vanya, se deixa seduzir e passa a acreditar que seu momento finalmente chegou, que é sua hora de também aproveitar todos os prazeres que a riqueza pode proporcionar. Descobriremos junto a Anora o quanto ela pode estar iludida. Junto a ela, sentiremos sua esperança e sua decepção.

A esperança possui embasamento. As primeiras cenas, que ilustram algumas posições eróticas realizadas por dançarinas como Anora, indicam um acúmulo: como se, depois de tanto rebolar (literalmente), a personagem merecesse sua recompensa (ou ao menos um salário justo, que ela reclama em dado momento). O mote de fundo do filme de Sean Baker — e, ao mesmo tempo, um dos pilares do protestantismo estadunidense (e da meritocracia neoliberal) — diz que o destino premiará quem trabalhar duro. Mote que é posto em dúvida todo o tempo, seja pela inveja de uma colega de boate, seja pelas atitudes de Vanya, seja pela falta de solidariedade que quase todos os personagens (à exceção de Igor) demonstram pela situação de Anora, ela mesma presa nesse conto de fadas às avessas, em que a gata borralheira, após ser premiada com um par romântico — e seu cartão de crédito encantado — precisa retornar do sonho rumo à realidade.

O grande tema de Anora é o poder e as inúmeras disparidades entre aqueles que o tem e aqueles que não o tem. Ani imaginava-se ganhadora de um ingresso no mundo dos poderosos, mas não percebeu que mesmo Vanya estava mais para subalterno — uma classe especial de subalterno, devemos admitir — que para patrão. Por outro lado, os quase-gansgters, que praticamente sequestram Ani para que juntos encontrem o foragido Vanya, sabem muito bem seu lugar dentro da hierarquia do poder. Eles são duros e violentos com Anora, mas sabem que tanto ela quanto eles são peças menores no jogo dos poderosos: nenhum tem condições de questionar ou confrontar os bilionários sem sofrer graves consequêncas. Sabem que o melhor a fazer é apenas obedecer — e torcer para serem poupados de alguma eventual represálisa, justificada ou não.

Os bilionários se apresentem como a realeza dos novos tempos, para quem regras e leis não funcionam — ou, se funcionam, o fazem de maneira distinta. Dentro da narrativa do filme, a trajetória de Ani envolve compreender o mundo em que alguns podem tudo, enquanto outros, muito pouco. Um mundo em que o valor protestante da prosperidade através do trabalho, quando se realiza, não acontece de maneira justa, nem para todo mundo, nem da mesma maneira, apesar dos esforços individuais. Um mundo em que, além do conto de fadas do príncipe encantado, é ainda mais urgente desmistificar um outro conto de fadas, que serve como uma das bases de sustentação do status quo e da manutenção das disparidades sociais (quando colocadas apenas na conta do empenho individual).

A cena final é complexa: ao mesmo tempo retorno ao lar e reconhecimento por Ani de seu lugar social (e do tipo de par romântico possível para ela), é também uma volta a seu antigo métier, à necessidade de trabalhar para garantir sua sobrevivência. O envolvimento entre os dois personagens dentro do carro, em uma relação que se equilibra entre a paixão, o desejo, a obrigação profissional e a atividade laboral, testa os limites entre a situação íntima e as obrigações contratuais (e mercantis), não isentas de cálculo ou interesse. Pela segunda vez, Anora recebe sua aliança de casamento, mas aqui o sentido é totalmente inverso ao da primeira vez. De porta de entrada a um mundo de sonho e hedonismo, se transforma em mero souvenir, uma espécie de prêmio de consolação. Anora cai em lágrimas. Talvez porque saiba que, no mundo em que vive, é impossível deixar intactas partes de si mesma como a intimidade e o amor. Pois são esses os seus produtos, é isso que ela vende para garantir seu sustento.

Ainda que não seja necessário considerar a prostituição uma profissão moralmente errada (e o filme em nenhum momento assume tal postura), não podemos deixar de notar o alto custo emocional e a falta de perspectivas (realistas, no caso) enfrentados pela personagem.

Em Anora, como diz o ditado, quem pode, manda. Quem não pode, obedece. Na primeira metade desse filme fraturado, a personagem imagina que também ela pode chegar a uma posição de mando (e assim encontrar fartura e conforto). A segunda parte vai contradizê-la. Não sem graça e sutileza. Não sem Sean Baker demonstrar um delicado equilíbrio entre o trágico e o cômico. Ao mesmo tempo, escancarando a condição da personagem de forma inequívoca e contundente. Sensação bastante agridoce, que compartilhamos com a personagem central.

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08 March 2025

alfred hitchcock (1899-1980)

 


A retrospectiva dedicada a Alfred Hitchcock na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, é uma ótima oportunidade para ver alguns dos maiores clássicos da história do cinema em tela grande, com boa projeção de som e imagem. De 6 a 16 de março, na Sala Grande Otelo e também na área externa, em projeções ao ar livre, serão exibidos 14 títulos: Os 39 degraus (The 39 Steps, 1935), único representante da chamada fase britânica; Rebecca, a mulher inesquecível (Rebecca, 1940), que marca sua chegada aos EUA e o começo da parceria com o produtor David O. Selznick; Interlúdio (Notorious, 1946), primeiro filme da fase estadunidense produzido pelo próprio Hitchcock; Festim diabólico (Rope, 1948), com seu até hoje impactante exercício de longos planos-sequência. Além desses, algumas obras maiores do momento mais conhecido da carreira do diretor, entre a década de 1950 e o início dos anos 1960, com Pacto sinistro (Strangers on a Train, 1951), Disque M para matar (Dial M for Murder, 1954), Janela indiscreta (Rear Window, 1954), Ladrão de casaca (To Catch a Thief, 1955), O homem que sabia demais (The Man Who Knew Too Much, 1956), Um corpo que cai (Vertigo, 1958), Intriga internacional (North by Northwest, 1959), Psicose (Psycho, 1960), Os pássaros (The Birds, 1963), e também um de seus últimos grandes trabalhos, realizado novamente na Inglaterra: Frenesi (Frenzy, 1972).

Uma das razões que ajudaram a transformar Hitchcock em um dos diretores mais cultuados da história do cinema foi sua recepção pela crítica francesa dos anos 1950. Mais tarde conhecidos como cineastas ligados à nouvelle vague, alguns jovens críticos, como Claude Chabrol, e outros nem tão jovens assim, como Éric Rohmer, dedicaram textos importantes à obra do britânico. Mas o evento mais importante para a divulgação do chamado mestre do suspense foi a publicação, em 1966, do livro com as entrevistas realizadas por outro crítico e diretor da turma dos Cahiers du Cinéma, François Truffaut, que esmiuçava a obra de Hitchcock filme a filme. Hitchcock / Truffaut (no original, Le Cinéma selon Alfred Hitchcock) logo se transformou em um clássico dos estudos de cinema, mostrando a futuros realizadores, muitos deles ligados às primeiras escolas que começavam a surgir mundo afora durante os anos 1960, que o acaso jamais fez parte da gramática hitchcockiana. Pelo contrário, muito raciocínio e exaustiva preparação estavam por trás de cada momento de sua obra cinematográfica, que deveria espelhar, a cada plano, a cada detalhe, os desejos e intenções de seu realizador.

Hitchcock / Truffaut também ajudou a entronizar a figura do diretor de cinema como o principal responsável pelas opções estéticas de um filme, questão mais tarde muito debatida e sobre a qual existe um interessante estudo publicado no Brasil, O autor no cinema, de Jean-Claude Bernardet e Francis Vogner dos Reis. Em resumo, apesar do diretor desempenhar uma função central, cinema é sempre uma realização coletiva. O mesmo vale para o próprio Hitchcock, que, a partir da década de 1950, quando passa a ser seu próprio produtor e ter ainda mais liberdade para escolher seus projetos, consegue estabelecer uma equipe mais ou menos estável — Robert Burks na fotografia (12 filmes), George Tomasini na edição (nove filmes), Bernard Herrmann na trilha musical (sete filmes), Edith Head nos figurinos (seis filmes), Hal Pereira (cinco filmes) e Henry Bumstead (três filmes) na direção de arte, John Michael Hayes no roteiro (quatro filmes), Saul Bass no desenho dos créditos de abertura (três filmes). Não por acaso, neste momento, sua obra atinge o ápice.

Além disso, Hitchcock é talvez o cineasta que melhor realiza uma síntese das quatro grandes escolas do cinema silencioso, como identificadas por Gilles Deleuze em A imagem-movimento: a estadunidense, a alemã, a soviética e a francesa. Que outro grande realizador, trabalhando na estrutura de estúdio de Hollywood, conseguiu construir narrativas tão fluidas (como na tradição estadunidense) e, ao mesmo tempo, realizar um exercício de montagem que não deixa nada a dever aos melhores momentos do cinema sovietico, como na famosa sequência do chuveiro em Psicose? Quem melhor absorveu a importância da atmosfera (como nas sombras de Rebecca ou Pacto sinistro) e o gosto pelos grandes cenários do cinema alemão (como na sequência final de Intriga internacional, no monte Rushmore) e, ao mesmo tempo, lançou mão de momentos oníricos, tão ao gosto do cinema silencioso francês, como em Quando fala o coração (ausente da retrospectiva) ou Um corpo que cai?

Deleuze, no capítulo final desse importante livro, faz ainda um belo resumo da obra do realizador:

Hitchcock introduz a imagem mental no cinema. Isto é: ele faz da relação o objeto de uma imagem, que não só se acrescenta às imagens-percepção, ação e afecção, como as enquadra e transforma. Com Hitchcock aparece uma nova espécie de “figuras”, que são figuras de pensamentos. Com efeito, a própria imagem mental exige signos particulares que não se confundem com os da imagem-ação.

Conhecer os filmes de Hitchcock nos aproxima do cinema que veio antes dele. Herança que, em seus filmes, aparece em um esforço de síntese e superação. Projeto estético que está, antes de mais nada, a serviço da narrativa, na identificação da plateia com os personagens (usando os sempre citados processos de transferência de culpa), na constante preocupação em entreter (pelo suspense ou por um muito peculiar senso de humor) etc.

Hitchcock é um esteta mas, antes de tudo, um contador de histórias. Em seu livro de entrevistas com importantes realizadores do cinema estadunidense, Peter Bogdanovich conta como, durante uma breve viagem de elevador, o britânico prendeu a atenção de todos ao seu redor ao tentar descrever uma imaginária cena de crime, caprichando na voz estupefata e na gesticulação das mãos enquanto tentava dar conta do indizível da imagem: "O cadáver... você não imagina... é impossível descrever... e o sangue... o sangue, Peter...".

Ao chegarem ao térreo, Bogdanovich notou como as pessoas hesitavam em sair, possivelmente querendo ouvir mais. Nessa "história de elevador", como Hitchcock a define, as reticências são o ponto de fuga para onde se lança a imaginação do ouvinte. Uma estratégia de montagem, realizada em pequena escala, que deixa lacunas para serem preenchidas pela imaginação de cada ouvinte (ou, na sala de cinema, cada espectador). Um desejo de imantar a atenção do público que pode ser encontrado em todos os seus trabalhos.

De tantas maneiras, Hitchcock é incontornável. Ver alguns de seus melhores filmes em tela grande, com boa qualidade de som e imagem, configura um imenso prazer para qualquer amante do cinema, seja para quem está reencontrando sua obra ou tendo a chance de conhecê-la pela primeira vez.

A programação completa da retrospectiva Alfreh Hitchcock está disponível aqui.

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05 March 2025

flow (2024)

Se o dilema que assola nossa época é a iminente catástrofe climática, Flow (Gints Zilbalodis, 2024) surge envolto em um cada vez mais raro espírito de otimismo, um pequeno vislumbre de como "adiar o fim do mundo", conforme o título do livro de Ailton Krenak. Centrado na figura de um gato que precisa escapar de uma inundação (e que vai encontrar outros animais pelo caminho), a animação de Gints Zilbalodis estabelece, logo em seu início, um sentimento apocalíptico a partir da fúria das águas que, sem aviso, começam a tomar tudo ao seu redor.

Não há pessoa humana em todo o filme, mas apenas indícios de civilização: construções abandonadas que remetem à idade antiga e também detalhes mais contemporâneos, como um lápis e uma resma de folhas de papel A4. Talvez, na narrativa do filme, a humanidade já tenha deixado de existir, com o planeta agora ocupado apenas por plantas, animais — e pela força das águas. Ainda mais importante que a ausência da figura humana, não existe em Flow qualquer resquício de linguagem verbal. Diferentemente do clichê de muitas animações (as produções de Walt Disney como modelos óbvios), o filme de Zilbalodis não mostra animais antropomorfizados, permitindo que sejam "apenas" animais. Assim, nunca fazem uso de língua humana, em nenhum idioma conhecido. Os vestígios humanos identificáveis não são textuais, mas visuais: desenhos, esculturas, arquitetura. Como se, ao contrário das coisas que podem ser vistas, a palavra, sem seus falantes, estivesse destinada a desaparecer.

Mas ausência de língua não significa ausência de linguagem. Os corpos falam. As expressões faciais, a posição do corpo, os olhos arregalados ou apertados, patas que se levantam, cabeças altivas ou temerárias etc. Qualquer pessoa que já conviveu com um gato poderá facilmente identificar os gestos do protagonista: as orelhas abaixadas e os olhos arregalados quando com medo; o espreguiçar quando acorda; o ato de afiar as garras em uma superfície de madeira; a maneira de se defender quando atacado. Assim como ele, cães, capivaras, macacos, aves e até um gigantesco cretáceo podem ter suas expressões facilmente interpretadas. Entre tantos outros méritos, uma coisa importante em Flow é nos lembrar mais uma vez como o cinema, ao lançar mão da expressividade corporal, pode prescendir da língua humana.

Se resta algo antropomorfizado nos diferentes personagens é sua inesperada disposição para colaborar. Não estamos no estado de natureza como entendido por Thomas Hobbes ao cunhar a expressão "o lobo do lobo do homem". Aqui, os animais parecem distantes (um talvez infundado otimismo nos obrigaria a dizer "mais próximos") do gênero humano como Hobbes o entende ao demonstrarem disposição para, aos trancos e barrancos e sem qualquer idealização, trabalhar em equipe. Menos um gesto de solidariedade que de sobrevivência, menos um ato de idealismo que de caráter, esses animais, alheios ao amor ou ao ódio, se mostram capazes de auxiliar uns aos outros. Se porventura conhecem o rancor e a maldade (quando uma ave machuca as asas de uma outra), também aprendem a suportar as diferenças uns dos outros. E a aprender com elas.

Palavras grandiloquentes — maldade, colaboração, aprendizado —, que nem sempre estão presentes quando se escreve sobre cinema, parecem brotar naturalmente ao tentarmos dar conta de Flow. A fábula nos convida a ir além de uma dimensão humana (ou, ao lembrarmos Freud, neurótica) para pensar em "grandes temas": a sobrevivência de um ecossistema, a irrefreável força na natureza, a impermanência das coisas (especialmente as de dimensão humana), a inexorabilidade do tempo e os inescapáveis grandes ciclos que sem aviso começam e, em certo momento, terminam — às vezes para, logo em seguida, recomeçarem.

Um mundo que exige menos pensamento que agilidade ou "fisicalidade", que aparece nas várias cenas com animais correndo em fuga, perseguições, saltos, mergulhos nas águas, voos, combates. Um verdadeiro corpo a corpo com a natureza e o mundo ao redor dos personagens, que excita o olhar (e a epiderme) da plateia. Fisicalidade construída também a partir de uma trilha sonora que privilegia ritmos e atmosferas, enquanto apenas pontualmente exige respostas mais emocionais da plateia.

Em meio à essa constante luta pela sobrevivência, Flow ainda guarda um momento de mistério e deslumbramento. Sem anúncio ou explicação. E que permanece na memória depois da saída da sala de cinema.

O filme começa e termina com uma imagem espelhada, um reflexo. Além disso, os macacos estão sempre obcecados por suas próprias imagens refletidas em espelhos, o que pode ser lido de várias maneiras: em parte como o reconhecimento de uma identidade (um "eu" apartado do resto do mundo), em parte um momento de reflexividade, quando se adentra no território da fantasia e da abstração, no mundo das possibilidades (diferente da concretude física do mundo). Talvez o convite do filme de Gints Zilbalodis seja esse: encararmos aqueles animais como nossos reflexos, como outras possibilidades de existência dentro de um mundo cada vez mais próximo do colapso. Um mundo cada vez menos humano e mais animal. Sem que isso seja necessariamente ruim. Muito pelo contrário.

Ou talvez uma sugestão para que, através do espelho do cinema, sejamos capazes de vislumbrar respostas para a pergunta que fizemos na abertura do texto sobre o que ainda pode ser feito para adiar o fim do mundo.

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04 March 2025

ainda estou aqui (2024)


Fernanda Torres interpreta Eunice Paiva em Ainda estou aqui (Walter Salles, 2024)

Na noite de domingo de carnaval, o Oscar de melhor filme internacional para Ainda estou aqui (Walter Salles, 2024) — primeira vez que um brasileiro vence nesta categoria — e a derrota de Fernanda Torres, que concorria como melhor atriz pelo filme de Walter Salles, para Mikey Madison, de Anora (Sean Baker, 2024), causaram reações de, respectivamente, euforia e decepção nas ruas em festa e nas redes sociais do Brasil. Enquanto o prêmio para o filme de Salles foi comemorado como uma conquista esportiva, com direito a gritaria e fogos de artifício, a derrota de Torres gerou indignação e um sentimento de que o Oscar, no fundo, não seria um prêmio digno de respeito.

Indo de um extremo a outro em uma virtual escala de entusiasmo, tais reações poderiam ser usadas para apontar certo caráter esquizofrênico do ethos brasileiro. Porém, mais importante que qualquer improvisado diagnóstico social, é preciso analisar o que significa o Oscar e como seus prêmios são dados — no geral, de maneira talvez bem mais aleatória do que gostaria a frustrada torcida pela vitória de Fernanda Torres.

Parece desnecessário reinterar elogios à interpretação da atriz para Eunice Paiva, reconhecida, entre outros, com o Globo de Ouro de melhor atriz dramática. A contenção, aliada à força emocional de seus gestos e expressões, resultado das escolhas de atriz e diretor, revelam um repertório construído durante décadas, no drama e na comédia, por uma atriz que já tem em sua trajetória um prêmio de interpretação feminina no Festival de Cannes por Eu sei que vou te amar (Arnaldo Jabor, 1984).

Se um espírito nacionalista esperava o Oscar para um filme brasileiro (láurea já conquistada por outros países latino-americanos como Argentina, com duas estatuetas, México e Chile), a derrota de Torres ecoou de maneira dolorida a de sua mãe, Fernanda Montenegro, que há 27 anos concorreu na mesma categoria por Central do Brasil (1997), do mesmo Walter Salles, quando a vencedora foi outra jovem atriz, Gwyneth Paltrow, então com 25 anos (mesma idade de Mikey Madison), por Shakespeare apaixonado (John Madden, 1998) — roteiro incrivelmente parecido, com a exceção de que, em 1998, A vida é bela (Roberto Benigni, 1997) venceu como melhor filme internacional.

Nestas quase três décadas, muita coisa mudou na indústria cinematográfica estadunidense (e, para ecoar a arquifamosa frase de Lampedusa, pouca coisa mudou na indústria cinematográfica estadunidense). Se neste período a Academia se abriu para novos valores, tendo premiado três mulheres com o Oscar de melhor direção (o que jamais tinha acontecido), com um número crescente de pessoas negras indicadas em diversas categorias e as surpreendentes vitórias de melhor filme para um francês (O artista, de Michel Hazanavicius, em 2012) e um coreano (Parasita, Bong Joon-ho, em 2020), ao mesmo tempo os velhos valores e fórmulas de Hollywood ainda ditam boa parte dos resultados. Ao abrir mão de premiar duas atrizes brasileiras, coincidentemente mãe e filha, em prol de duas jovens apostas, o recado é claro: a Academia está aberta à renovação e à diversidade, mas sempre mantendo, na medida do possível, a hegemonia do estrelato para atrizes formadas dentro da indústria estadunidense — ou que joguem por suas regras.

Diferentemente dos festivais europeus, em que um júri decide, o Oscar representa um amplo colegiado de votantes. Nesse universo, é sempre possível que nem todas as pessoas tenham visto todos os filmes em disputa — o que depende de campanhas de marketing e da visibilidade dos concorrentes — ou que simplesmente votem, como acontece em qualquer eleição, mais pela emoção que pela razão. Assim, ainda que a interpretação de Torres seja primorosa e ainda que os termômetros (como o prêmio do sindicato dos atores) indicassem altas chances de uma vitória de Demi Moore por A substância (Coralie Fargeat, 2024), ganhou uma jovem atriz em um filme que — antes de seus cinco prêmios no Oscar — já havia vencido o Festival de Cannes. Decepcionante? Para as derrotadas, sim. Injusto? Bem... sem querer ser muito em cima do muro (e apesar de termos nossas preferências e nossas torcidas), podemos dizer que cada uma das cinco performances, dentro de suas propostas, apresentam seus pontos positivos e negativos. A boa notícia (se é que ela existe) é que, ao invés da contenção de Torres, venceu um trabalho de grande qualidade física, coisa que o Oscar nem sempre soube valorizar — vide quantos grandes comediantes nunca tiveram suas carreiras devidamente reconhecidas.

A vitória do filme de Salles, que traz à tona o tema da ditadura civil-militar brasileira e dos desaparecidos polítcos, não agradou a uma esquerda mais combativa — que talvez preferisse uma denúncia mais direta, talvez com acusações mais explícitas aos responsáveis pela morte de Rubens Paiva. E também não agradou a uma extrema direita que nega sequer a existência de tais crimes ou sua gravidade. Apesar disso, a estatueta dourada conseguiu criar um frágil sentimento de união nacional misturado com a grande festa de rua que é o Carnaval.

Não haveria Ainda estou aqui, é claro, sem o livro de Marcelo Rubens Paiva ou sem o trabalho da Comissão Nacional da Verdade, que tentou responsabilizar aquelas pessoas que assassinaram e colaboraram no assassinato de militantes, políticos, artistas e de tantas pessoas comuns, anônimos que lutavam contra o regime de exceção no Brasil. Iniciativa do governo da presidente Dilma Rousseff, ela mesma presa e torturada durante os chamados "anos de chumbo", o relatório da Comissão tocou em traumas que corriam o risco de ficarem para sempre ocultados ou esquecidos. Abrir essa caixa de Pandora foi algo que muitos setores jamais perdoariam em Dilma — e que contribui para a perda de sua força política e a instauração do pedido de impeachment que, sem apresentar nenhuma prova contundente de má conduta, a tirou do poder.

Ainda estamos aqui (e todo carnaval tem seu fim). O Brasil venceu sua primeira estatueta de melhor filme internacional e Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, mesmo derrotadas, ainda são duas das maiores atrizes da história do cinema. E, tanto aqui como no resto do mundo, para alegria de uns e desgosto de outros, eleições seguem escolhendo seus vencedores mais pela emoção que pela razão. E assim segue a carruagem.

Tudo muda para tudo continuar do mesmo jeito.

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25 November 2020

mulher oceano (2020)

 


Cada época histórica tem seus próprios temas e obsessões. Quando notados, revelam muito do que atende pelo pomposo termo Zeitgeist. Quando despercebidos, são reduzidos a meros clichês: temas e figurações tão repisados que parecem esgotados de sua capacidade de revelar algo sobre seu tempo.

Um olhar desatento poderia encarar Mulher oceano, a estreia na direção da experiente atriz Djin Sganzerla, como um filme de clichês, uma colagem de cenas e situações vistos em filmes anteriores: da cena de karaokê de Encontros e desencontros (Lost in Translation), de Sofia Coppola, às mergulhadoras de Ama-san, documentário de Cláudia Varejão; dos filmes urbanos cariocas (o pai empobrecido a esbanjar dignidade; a violência de uma demissão eminente em frente ao cenário de cartão-postal da Baía de Guanabara; a vida noturna com os amigos) à multiplicação de identidades de A dupla vida de Véronique (La double vie de Véronique), de Krzysztof Kieślowski.

Mas, ainda que muito pareça estar sendo revisto, há também uma sensação contrária. Como se, ao revisitar situações conhecidas, fosse possível senti-las como na primeira vez. A personagem da mulher-viajante representa isso: totalmente conectada com as pessoas através do celular e do computador enquanto demonstra sincero interesse pelo que lhe é diferente, ela tenta recuperar, nas coisas e pessoas que encontra em seu caminho, a força do primeiro olhar, o sentimento de descoberta.

Mulher oceano é, desde seu título, um filme feminino, que reflete outro clichê: a dualidade (ou multiplicidade) associada ao arquétipo feminino. A(s) personagem(ns) de Djin Sganzerla aparece(m) ora no Brasil, ora no Japão. Ora preocupada em escrever um livro, ora em fazer uma travessia no mar a nado. Ora lidando com os cacos de seu passado, ora negociando com as exigências do trabalho em uma empresa. Duas mulheres, que podem ou não ser a mesma pessoa — isso pouco importa. O que interessa é o caminho subterrâneo (melhor dizer “submarino”) que conecta essas duas figuras: toda uma ideia de “profundidade” e de coisas ocultas. Mas também, e de maneira mais prosaica, toda uma ideia de montagem cinematográfica.

Dizer que o Rio de Janeiro poderia ser Tóquio ou que o Oceano Pacífico poderia ser o Atlântico seria retomar ainda outros clichês. Apesar de todas as diferenças (que não desaparecem), Mulher oceano trabalha na criação de aproximações, ecos, espelhamentos e desdobramentos entre seus elementos. No país oriental, uma ama-san afirma que, quando ao se perceber presa durante um mergulho, basta soltar a corda. O difícil, segundo ela, é lembrar-se disso no momento necessário, quando surgem o medo e o desespero. A corda — em seu sentido fílmico, seria a montagem, liame entre uma imagem e outra, entre uma ideia e outra.

Essa “corda” que reúne todas as imagens é mais que uma ideia de “feminino” e mais que o corpo feminino que organiza o filme (à frente e atrás das câmeras). Tal “corda” é justamente o tal Zeitgeist, o espírito de um tempo obcecado pela ideia de “estar conectado” — seja pela tecnologia (as telas), seja com a natureza (o mar), seja consigo mesmo. Se, na narrativa do filme, a imagem de Djin Sganzerla atende por dois nomes distintos (o que indicaria duas personagens), as fotografias de seu corpo nu, conforme seu pedido, devem permanecer anônimas. Um corpo sem nome e sem identidade ou, antes, um corpo em busca de um nome e de uma identidade. Mulher oceano é, em mais de um sentido, um filme sobre aprender a soltar as cordas, sobre libertar-se de identidades impositivas, sobre permitir-se ser outras pessoas. Seja durante um mergulho, seja na busca pela escrita de um romance, seja na entrega do corpo ao olhar do outro.

Quem seria esse “outro” no caso da delicada cena da sessão fotográfica? Claro que o personagem do escritor japonês, seu guia por terras estrangeiras. Mas também a câmera tateante, operada por André Guerreiro Lopes, constante parceiro artístico (e de vida) da diretora. E, além disso, também de um deslocamento, similar ao que acontece no interior da narrativa: tem-se a diretora Djin que observa a atriz Djin e que percorre seu próprio corpo em busca de talvez redescobrir-se, em busca de talvez reinventar-se. O próprio corpo (e a própria identidade) como territórios desconhecidos.

Nesse sentido, o espelhamento entre a personagem da nadadora e a da escritora supera um mero jogo de construção pós-moderna, uma espécie de “quem imagina quem”, para alcançar uma alteridade reflexiva, preocupada com as estranhezas (e delícias) de ser quem se é. Sim, é preciso perder-se para se reencontrar. Para poder renascer, é preciso lançar-se ao fundo do mar sob o risco de não mais voltar.

Após anos dedicados ao ofício de atriz, no teatro e no cinema, Mulher oceano mostra Djin Sganzerla a se reinventar diretora. O caráter de novidade e descoberta presente em vários momentos, e que poderia ser entendido como algo banal em filmes de estreia, é na verdade muito mais raro do que se imagina, bem como mais difícil do que parece de ser atingido. Em Mulher oceano, os momentos de hesitação são superados pelo entusiasmo com que coisas e pessoas são observadas. Vemos aqui a diferença entre os tantos primeiros filmes que parecem afirmar “eu posso filmar” e um outro que afirma, simplesmente: “eu vejo”.

À viajante em terra estrangeira, resta apenas isso: a possibilidade de ver antes de tentar compreender o que a rodeia. A nadadora, pelo contrário, parece nunca enxergar as evidências, sendo sempre enganada por sua intuição, seja na cena da “demissão”, seja na dos testes ergométricos etc. Uma espécie de aprendizado parece separar uma e outra personagem. Como se uma estivesse ainda prestes a romper as cordas enquanto a outra já tivesse feito isso.

Haverá talvez quem veja em Mulher oceano um filme sem grande novidade, o que não deixa de ser verdadeiro. Mas sua grande força é justamente um olhar atento sobre aquilo que aparentemente sempre estive aí. Olhar que parece transformar o corriqueiro em inusitado e o inusitado em corriqueiro.

Entre as velhas mergulhadoras japonesas, algumas por vezes se esquecem de como retornar à superfície. Esse delicado instante entre a vida e a morte, entre as profundezas do oceano e sua superfície, é o difícil território que o filme de Djin Sganzerla parece habitar.

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29 March 2020

. conceitos fundamentais da história da arte

Em O que é arte (15ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 38), o professor da Unicamp Jorge Coli apresenta de forma resumida as distinções entre dois períodos da história da arte, o classicismo e o barroco, conforme Heinrich Wölfflin (1864-1945) em seu Princípios fundamentais da história da arte (1915):
1) o classicismo é linear, o barroco, pictural;
2) o classicismo utiliza planos, o barroco, a profundidade;
3) o classicismo possui uma forma fechada, o barroco, aberta;
4) o classicismo é plural, o barroco, unitário;
5) o classicismo possui uma luz absoluta, o barroco, relativa.
Um retorno a Wölfflin pode nos embasar a cotejar essas distinções a partir das obras abaixo:

O nascimento da Vênus
(Nascita di Venere, c. 1484-86)
Sandro Botticelli (1445-1510)
têmpera sobre tela, 172,5 cm × 278,9 cm, Galleria degli Uffizi (Firenze)

Judite decapitando Holofernes
(c. 1598-1599)
Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610)
oil on canvas, 145 cm × 195 cm (57” × 76.7”), Galleria Nazionale d’Arte Antica (Roma)

A cena bíblica acima é narrada em O livro de Judite — que entra no acampamento do exército inimigo, participa de um banquete, seduz o comandante Holofernes e corta-lhe a cabeça.

Esse mesmo episódio foi também retratado por uma artista mulher, Artemisia Gentileschi, muito inspirada por Caravaggio e 22 anos mais jovem que ele:

Artemisia Gentileschi (1593-1656)
oil on canvas, 158,8 cm × 125,5 cm (6’ 6” × 5’ 4”), Museo Capodimonte (Napoli)

A partir dessas imagens, podemos também avaliar diferentes visões (praticamente contemporâneas) de uma mesma história bíblica à luz das questões de gênero.

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E também pensar em como o barroco atingiu certo ápice em Diego Velázquez, aqui com seu arqui-famoso As meninas:

Las meninas
(1656)
Diego Rodríguez de Silva y Velázquez (1599-1660)
oil on canvas, 318 cm × 276 cm (125.2 in × 108.7 in) Museo del Prado (Madrid)

Um dos melhores capítulos sobre o quadro ainda é aquele em As palavras e as coisas (trad.: Salma Tannus Muchail. 8ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999), de Michel Foucault. Recentemente publicado no Brasil, Nada se vê: seis ensaios sobre pintura (trad.: Camila Boldrini; Daniel Lühmann. São Paulo: Ed. 34, 2019), de Daniel Arasse, conta com um muito bem informado capítulo sobre a obra-prima do pintor espanhol. Uma boa introdução às questões levantadas pelo quadro pode ser encontrada no texto de Alexandre Sá na revista Concinnitas, publicação do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. E uma visita virtual pode ser realizada a partir do sítio do Museo del Prado.

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. krzysztof penderecki (1933-2020)


Morreu Penderecki.

Sua música, inseparavelmente entranhada na memória de filmes como O exorcista (Friedkin); O iluminado (Kubrick); Coração selvagem, Império dos sonhos e da série Twin Peaks (Lynch); Ilha do medo (Scorsese), entre outros.

Sua talvez mais impressionante realização, a Trenódia para as vítimas de Hiroshima, composta em 1960, lembra as 140 mil pessoas (mais de um terço da população da cidade) que morreram apenas em 1945 pela explosão ou consequências da bomba atômica lançada pelo governo dos EUA sobre a cidade japonesa de Hiroshima (sem contar os posteriores casos de câncer e outros problemas de saúde, que se estenderam por décadas, tampouco as mortes provocadas pela segunda bomba, jogada sobre Nagazaki).

Esta pungente peça — assim como o livro de John Hersey (Hiroshima. trad.: Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2002); ou o filme Black Rain (黒い雨, Shohei Imamura, 1989); ou a peça de teatro Os sete afluentes do rio Ota, de Robert Lepage (1989), montada no Brasil com direção de Monique Gardenberg — está entre as maiores criações humanas realizadas à sombra desse muito trágico acontecimento, esse crime contra a humanidade.

Além de compositor, era um muito ativo regente, com algumas passagens pelo Brasil, a mais recente à frente da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a Osesp, em setembro de 2017. Abaixo, o segundo movimento da Sinfonia nº 3, de Górecki, com a Orquestra da Rádio Nacional Polonesa conduzida por Penderecki e participação da cantora Beth Gibbons — talvez mais conhecida por seu trabalho com a banda inglesa Portishead. (Pode-se ouvir a peça completa também no Spotify.)

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Aqui, na página da Osesp, um ensaio do musicólogo Mieczyslaw Tomaszewski sobre o compositor polonês. E abaixo, uma performance da Trenódia (uma das músicas mais impressionantemente dolorosas de todo o repertório sinfônico), com a Orquestra Sinfônica da Rádio Finlandesa, sob a regência de Krzysztof Urbański.

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24 March 2020

. breve panorama da história da música ocidental

Ludvig van Beethoven

Uma playlist com um breve (mas não rápido) panorama da história da música ocidental, principalmente da música clássica, e com alguns rápidos desdobramentos para a música popular.

No começo, algumas poucas obras do Renascimento para logo chegarmos a Johann Sebastian Bach — a pedra fundamental da música ocidental — e o barroco.

Depois, com Mozart, o classicismo. E, de Beethoven para frente, o romantismo. (Com direito a algumas "releituras" inusitadas do autor da famosa Nona sinfonia.)

De Dvořák em diante, alguns exemplos do nacionalismo (inclusive com nosso Carlos Gomes) até chegarmos a Wagner e uma espécie de "encruzilhada", ambas saindo do mestre de Bayreuth:

a) em um caminho, o romantismo tardio (com diferentes versões do quarto movimento da Primeira sinfonia de Gustav Mahler, para fins de comparação).

b) no outro, de Debussy em diante, a música moderna, o dodecafonismo de Schoenberg, o atonalismo...

Das harmonias de Debussy, chegamos ao maestro Antonio Carlos Jobim e um bloco com a música brasileira da primeira metade do século XX.

E depois, com Gershwin, chegamos ao jazz. (Ou talvez com o jazz, chegamos a Gershwin.) Permanecemos ainda com compositores estadunidenses (Bernstein, Copland) e rapidamente estamos na Berlim dos últimos dias da República de Weimar com as canções de Kurt Weil... até que surge Messiaen e o trauma dos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial, que serve de inspiração a Penderecki para sua Trenodia para as vítimas de Hiroshima. (Uma das músicas mais chocantes e pungentes da lista.)

Daí em diante, a música contemporânea com seu uso de fitas pré-gravadas, de loops, de experiências de espacialização, uma revisão das técnicas do atonalismo a partir de relações com as ciências naturais e matemáticas, um retorno ao lirismo, as conexões entre a música clássica e as manifestações da música popular, a busca por uma nova transcendência... até os dias de hoje.

Boa escuta!

No Spotify.

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Abaixo, um vídeo com sir Simon Rattle (um dos maiores regentes da atualidade) conduzindo uma peça de György Ligeti, com performance da maestrina e soprano canadense Barbara Hannigan.


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. observações sobre o Renascimento

O Renascimento foi um período complexo, marcado por intensas mudanças nas ideias e nas relações sociais e econômicas, que durou mais de dois séculos (do final do século XIII à primeira metade do XVI) e teve como um de seus apogeus algumas das obras de arte mais importantes da história.

Observe com atenção o desenho abaixo, feito em uma página de caderno e conhecido como O homem vitruviano, de autoria de Leonardo da Vinci:

O homem vitruviano (c.1492)
Leonardo da Vinci (1452-1519)
tinta sobre papel, 69 cm × 57 cm, Gallerie dell’Accademia (Venezia)

Perceba as conexões entre o desenho acima e as afirmações do livro O Renascimento (16ª ed. rev. São Paulo: Atual, 1994), em que o historiador Nicolau Sevcenko coloca as bases materiais e ideológicas do Renascimento como sendo
[um] conjunto de circunstâncias [que] instituiu a prática da observação atenta e metódica da natureza, acompanhada pela intervenção do observador por meio de experimentos, configurando uma atitude que seria mais tarde denominada científica. O objetivo era obter o máximo domínio sobre o meio natural, a fim de explorar-lhe os mínimos recursos em proveito dos lucros de mercado. O instrumento-chave para o domínio da natureza e de seus mananciais, através do qual se poderia condensar sua vastidão e variedade numa linguagem abstrata, rigorosa e homogênea, era a matemática. (SEVCENKO, 1994, p. 12)
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Uma das pinturas mais famosas do mundo:

Mona Lisa (c.1503-1516)
Leonardo da Vinci (1452-1519)
óleo sobre madeira, 76,8 × 53 cm, Musée du Louvre (Paris)

No comentário de Sevcenko sobre as artes plásticas no período do Renascimento:
as artes plásticas acabaram se convertendo num centro de convergência de todas as principais tendências da cultura renascentista. E, mais do que isso, acabaram espelhando, através de seu intenso desenvolvimento nesse período, os impulsos mais marcantes do processo de evolução das relações sociais e mercantis. (SEVCENKO, 1994, p. 25)
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Um vídeo com curiosidades do quadro mais famoso do Louvre. (Em inglês, com legendas também em inglês.)


aqui, uma visita virtual ao quadro.

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22 August 2019

once upon a time... in hollywood (2019)


Nove notas sobre o (nono) filme de Quentin Tarantino:

1. Como esperado nos filmes do diretor, Era uma vez... em Hollywood está repleto de referências cinéfilas. Quem gosta de passatempos do tipo "ligue os pontos" ou "jogo dos sete erros" pode encontrar prazer em identificar a maior quantidade possível delas. Para quem não se incomoda em trapacear um pouco, pode-se sempre recorrer às ferramentas de busca online. À parte a diversão, alguns chamarão "autorreferência" ao que outros preferirão "narcisismo barato". Para estes, é preciso lembrar que nenhum elenco com Leonardo diCaprio e Brad Pitt pode ser impunemente chamado de "barato". "Narcisismo", talvez; "barato", nunca.

2. Mesmo sem ser barato, foi bem pago. Entre os coadjuvantes, a hippie caronista de Margaret Qualley ou a atriz mirim de Julia Butters magnetizam suas cenas: estreantes (ou quase) com atuações de veteranos. Tarantino, goste-se dele ou não, é excepcional diretor de atores, apesar de seu insistente gosto pela caricatura. (Aliás, quem poderia interpretar os bípedes mais elegantes da recente história universal - Bruce Lee, Steve McQueen - e ao mesmo tempo evitar a caricatura?) Pode-se notar que o Oscar fez bem a DiCaprio, um bom ator que, até receber a estatueta, parecia obcecado em causar boa impressão, em realizar qualquer "esforço a mais" que pudesse servir ao breve clipe que ilustra a indicação ao prêmio. (De certa maneira, deu certo: venceu por uma interpretação marcada por toda sorte de excessos.) Em Era uma vez... em Hollywood, ao invés de esforço, o ator mostra fluidez, uma capacidade (invulgar) de ir, em segundos, da insegurança à histeria; da angústia à empáfia. E, se DiCaprio tende ao peso, Brad Pitt é todo leveza. (E a leveza, sabe-se, é a matéria-prima de toda grande atriz e de todo grande ator.)

3. Cachês e suas correlatas crises de insegurança são um dos motes centrais em Era uma vez em... Hollywood. Os inseparáveis amigos são as duas faces da indústria, ambos afetados pela deterioração das condições do mercado de trabalho. Com dificuldades para encontrar oportunidades, o dublê conta com a interferência (ou insistência) do amigo famoso. E, como se Hollywood houvesse inventado o Uber, vemos um trabalhador (da indústria de cinema) à disposição por tempo indeterminado (no set, vestido com o figurino etc.), apesar de não estar sob nenhuma espécie de contrato além de um mero acordo verbal. E ali ele permanece, a esperar um chamado que talvez nunca ocorra, sob a ameaça de ser dispensado a qualquer momento, por qualquer motivo, seja ele fútil (uma briga) ou grave (a suspeita de feminicídio). Por outro lado, a vida também não é exatamente mais fácil para o ator-quase-celebridade (eis a questão) que não encontra trabalhos que correspondam ao seu currículo (ou a suas expectativas de carreira). Vemos o que qualquer um que já frequentou sets de cinema conhece bem: atrizes, atores (ou dublês) são feitos de muita espera - e, por vezes, de muitos cigarros. Em meio a tudo isso, Tarantino acena a certa "inteligência da indústria" (o "gênio do sistema" de Thomas Schatz), na figura de um produtor judeu (um Al Pacino também caricato) que busca alternativas que, se hoje, de forma anacrônica, soam bastante razoáveis, à época pareciam muito longe disso. (Mas Tarantino esquece de dizer a seu público que Hollywood, em fins dos anos 1960, enfrentava grave crise econômica. Sobre o tema, ver The Kid Stays in the Picture, sobre Robert Evans, controverso produtor de alguns sucessos do período como... O bebê de Rosemary.)

4. Ainda sobre as questões salariais, Tarantino apresenta um teorema em que os cachês pagos têm valores inversamente proporcionais à autoconfiança daqueles que os embolsam. Se os astros principais (seja Rick Dalton, personagem de DiCaprio, seja Bruce Lee, personagem de Mike Moh) a todo tempo duvidam de si mesmos, o dublê interpretado por Brad Pitt demonstra uma confiança inabalável (em si, em seu carro, em sua cadela), uma quase-empáfia feita sob medida para este ilustre desconhecido. Quando sobe em um telhado para consertar uma antena, ele sabe que aquele ponto de observação privilegiado (de lá pode-se espiar a casa dos vizinhos) é também um ponto privilegiado para ele próprio ser observado. Não demora para a autoconfiança aparecer mais uma vez, com um despir-se da camisa e um gesto lânguido para acender (ei-lo novamente) o cigarro. Mais tarde, outro personagem lembra que Booth tem sobrenome de assassino e sob ele paira uma grave suspeita (do qual o filme parece isentá-lo). Mas do alto do telhado (ou nos fundos de seu trailer emporcalhado), o dublê parece acreditar que a) jamais cometeu qualquer crime, ou b) não merece punição por qualquer crime cometido. Temos um Raskólnikov galã de Hollywood, reverso perfeito de outro Raskólnikov, muito mais odioso (e que, diferentemente do personagem de Crime e castigo, parece jamais ter experimentado qualquer espécie de remorso ou arrependimento): Charles Manson.

5. Tarantino está longe de um Dostoiévski e seu filme não é um Pickpocket. Ainda assim, a impunidade parece habitar seus interesses. Uma impunidade, é preciso frisar, um tanto seletiva: se alguns podem continuar livres, mesmo tendo talvez assassinado as esposas, aos outros é reservado o lança-chamas e a incineração sumária. É como se Tarantino fosse um juiz bastante peculiar, que estabelece seus vereditos não após o crime ser cometido, mas antes: àqueles que já assassinaram, a liberdade; aos que, suspeitamos, podem eventualmente vir a cometer um crime, uma execução sumária, odiosa, sem tribunal. A bem da verdade, nós (público sanguinário e bem informado, leitor assíduo de redes sociais) não sabemos de nada. Mesmo assim acreditamos fortemente, a partir de evidências tiradas de ilibadas páginas da internet, que alguns merecem morrer a fortiori, para deleite das plateias. (Aqui, o tom de indignação, justiça seja feita, talvez não esteja na conta do filme de Tarantino. No dia em que escrevo estas linhas, a se embaralhar com as imagens do filme, o governador do Rio de Janeiro comemora sem constrangimento a morte de um homem que havia sequestrado um ônibus durante o trajeto sobre a ponte Rio - Niterói.) Tarantino (Witzel?) possui bom timing histórico e retoma o western (um de seus gêneros de devoção - do cineasta, não do governador) ao mesmo tempo em que o mundo ocidental parece retomar um dos problemas centrais do "gênero norte-americano por excelência": como estabelecer a lei frente à barbárie? (E se alguns westerns retrataram a barbárie ao lado dos povos originários, afirmamos aqui que ela está, como sempre esteve, muito mais ao lado dos "brancos civilizados", esses Brad Pitts de antanho.)

6. Era uma vez... em Hollywood é abertamente saudosista e, como bem apontou João Pereira Coutinho na Folha de S. Paulo, escancaradamente reacionário. Se, em um western de John Ford, a lenda era mais forte que a história - e imprima-se a lenda -, em Tarantino é a mentira que supera a lenda. Logo, imprima-se a mentira, mesmo porque ninguém parece se importar muito... A associação direta, quase didática, do movimento hippie à família Manson e a posterior inferência entre estes e os nazistas de celuloide (tanto uns quanto os outros acabam mortos pelo fogo do lança-chamas), parece dar fôlego a esse mal-estar contemporâneo: o revisionismo histórico irresponsável. Pelo menos desde Bastardos inglórios, Tarantino gosta de reescrever a história como um grand guignol farsesco. (Qualquer coincidência com os terraplanistas ou com os negacionistas da catástrofe climática não é mera coincidência.) Mas, em meio a tudo isso, o garimpo musical do realizador, com músicas pop dos anos 1950 e 1960, provoca cúmplices sorrisos no espectador informado, e sorrisos cúmplices (a sensação de pertencimento a um grupo) têm sido, nos tempos que correm, a forma mais eficaz de se encerrar qualquer debate. E nenhum senão poderá fazer frente às vozes de uma Aretha Franklin, de um Paul Simon, de um Billy Stewart.

7. Ao invés de manipulação do tempo histórico, poderíamos dizer "manipulação do tempo cinematográfico". Tarantino sempre foi mestre no controle das durações (nas cenas) e das temporalidades (nas estruturas narrativas). Aqui, esse traço aparece elegante como nunca. Nesse sentido, trata-se de um dos melhores trabalhos do realizador, com um ritmo bastante peculiar, diríamos mesmo "sedutor", mérito também de Fred Raskin, responsável pela montagem deste e dos dois longas anteriores do diretor (assumindo de vez o lugar da falecida Sally Menke, que montou todos os demais longas de Tarantino). Se em Os oito odiados o andamento era um tanto auto-indulgente (e alguns minutos a menos talvez não fizessem mal ao filme), Era uma vez... em Hollywood apresenta ritmo mais uniforme. (Exceção feita à sequência final, que, para o bem e para o mal, destoa radicalmente do resto.)

8. Ainda sobre a manipulação da duração, é preciso lembrar que o modelo maior de Quentin é Sergio. Não Corbucci, explicitamente citado em Era uma vez... em Hollywood, mas "o outro Sergio", implicitamente citado. O cinema de Tarantino parece sempre debater-se nessa tentativa de equilibrar-se entre os dois Sergios, um dado ao excesso, outro ao rigor formal.

9. Os duplos e os espelhamentos possuem ainda outra dimensão: o filme inicia-se com uma entrevista na TV e termina (há uma cena durante os créditos de encerramento) com um comercial para a TV. Imagens em preto e branco, com os personagens falando diretamente à câmera, interpelando o espectador. A televisão emoldura Era uma vez... em Hollywood, o que não deixa de ser um tanto irônico em um diretor tão ostensivamente cinéfilo. Televisão aqui vista como propaganda, seja do seriado, seja (ele novamente) da marca de cigarros, e que parece trazer em si uma ideia de engano. Na derradeira ação do filme, o ator se rebela contra sua imagem duplicada, uma boa síntese do que se acaba de assistir. Na cena do início, o outro duplo do ator (seu dublê) diz que seu trabalho é, para usarmos o bom português, "carregar o piano" - outro bom resumo da questão. Se Era uma vez... em Hollywood corresse ao contrário, da última síntese (o ímpeto autodestrutivo) à primeira (a necessidade de se escamotear a ideia de trabalho nas imagens produzidas por Hollywood), estaríamos em outro filme, um dos melhores sobre os bastidores da indústria de cinema: A cidade dos desiludidos (Two Weeks in Another Town), dirigido por Vincente Minnelli e recuperado em O desprezo (Le Mépris), de Godard. Mas o que tudo isso pode quer dizer? Talvez que a auto-negação blasé está para a autodestruição assim como um filme está para seu making of. Ou, se passarmos da realização para a crítica, trata-se apenas deste autor que, ciente dos prazeres da citação cinéfila, decidiu demonstrar seus invejáveis dotes em provocar corridas às ferramentas de busca online.

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17 January 2017

nocturnal animals (2016)


Saio da sessão de Animais noturnos e só consigo pensar nos óculos de aros imensos que Amy Adams usa para ler a novela que recebeu pelo correio do ex-marido... Fico me perguntando se - eu mesmo um adepto de armações mais pesadas - não estaria fugindo do filme em si, mas depois vou me dando conta que pelo contrário: aqueles óculos chamam tanto a atenção sobre si mesmos que acabam por se transformar em uma espécie de máscara - e eis um dos temas centrais do filme.

Nos talvez 20 primeiros minutos da projeção, enquanto vamos sendo apresentados ao mundo da personagem principal, transborda essa sensação um tanto entediante do excesso de artificialismo: uma mistura de publicidade de revista de aeroporto com catálogo de moda e design para o 1% mais rico do planeta. Não casas, mas maquetes; não pessoas, mas manequins; não rostos, mas - novamente - máscaras.

(Deve-se registrar também, para explicar o supracitado tédio, a aparente indecisão - e muitas vezes, a ineficácia - do diretor na escolha dos ângulos de câmera. os sucessivos campo e contracampo da festa, logo nas primeiras cenas, demonstram um descompasso entre mise-en-scène e montagem rara mesmo em estudantes de cinema...)

De volta à ideia da máscara (essa aparência artificial que poderia somar, mas que aqui parece apenas subtrair algo da "verdade" das coisas concretas) também acompanha a cena mais constrangedora do filme. Não a interessantíssima e inusitada sequência dos créditos iniciais, que provoca uma deliciosa reação de estranheza e surpresa, a própria sequência servindo de máscara a todo o resto da projeção, mas sim a cena da reunião de trabalho, em que um grotesco close de rosto feminino, com evidentes cirurgias plásticas, serve como exemplo de que "menos é mais" (algo que, afinal, parece contraditório em uma direção de arte tão agressivamente evidente).

Para além da história da moça rica e um tanto mimada que vive um casamento infeliz (por que não se divorcia?) enquanto relembra os sonhos e as culpas de um casamento fracassado (quando efetivamente se divorciou) de um casamento infeliz, temos o que há de mais interessante no filme de Tom Ford: a ficção dento da ficção, a história do pai de família em busca de justiça... ambos (o ex-marido na vida real e o pai da história ficcional) correspondem ao corpo do mesmo ator, Jake Gyllenhaal. A ficção como máscara da realidade ou vice-versa.

Nessa história dentro da história, surge o que Animais noturnos tem de melhor: Aaron Taylor-Johnson. A extrema ambiguidade de seu personagem, que parece nunca se definir (entre infantil e perigoso, assassino e inocente injustamente acusado), é a essência do que pode significar "máscara" em uma dimensão mais profunda.

Assim, acompanhar toda a perfomance de Taylor-Johnson (com ele imitando um gato na janela do automóvel, sentado displicentemente em um vaso sanitário ou mandando beijos lascivos já na sequência final) é o que transforma os jogos de superficialidade dos cenários e figurinos em um perigosíssimo jogo entre superfície (aparência) e verdade: temas caros à tradição cinematográfica.

Com grandes performances (Gyllenhaal e Michael Shannon, brilhantes), Animais noturnos poderia ser um grande filme sobre a dissimulação e o engano mas, ao mesmo tempo, um tolo desperdício de tempo na contemplação do vazio das aparências (algo parecido é o que Adams fala das obras que exibe em sua galeria de arte).

O fascínio deslumbrado com invólucros e superfícies e a vertigem do que pode haver de trágico sob essas mesmas superfícies são os polos que movimentam o filme de Tom Ford. Poderia ser um estudo sobre a representação e a dissimulação, mas seja talvez apenas um esboço para um comercial de armação de óculos.

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14 August 2016

campo grande (2015)


À primeira vista, Campo Grande trata de um tema clichê do cinema brasileiro: as distâncias entre distintas classes sociais. No filme de Sandra Kogut, Rayane (cinco anos de idade) e Ygor (seu irmão mais velho) são deixados à porta de um prédio de apartamentos em Ipanema, Zona Sul do Rio de Janeiro. Em uma das primeiras cenas, a câmera permanece atenta à garotinha enquanto as demais personagens (mãe e filha, a empregada da família, o porteiro do prédio) tentam decidir o que fazer: conversam entre si, buscam algo na Internet, dão telefonemas. Apenas depois de certo tempo alguém resolve fazer uma pergunta à criança, que responde sem que ninguém pareça escutar.

A incomunicabilidade continua quando Regina (Carla Ribas) tenta acessar o atendimento telefônico da Prefeitura do Rio, sem encontrar a opção correta entre aquelas oferecidas pela máquina que, voz pré-fabricada e simpatia artificial, conclui que “não pode ajudar” e afirma estar “mais conectado a você”. Se, na cena anterior, os adultos não conseguem ouvir a criança, agora é a cidade que não ouve seus cidadãos.

É assim, de forma sutil, que Campo Grande cria as relações sempre incompletas entre seus personagens, pautadas pela incompreensão. Não se trata apenas de um abismo social, pois a conversa será difícil mesmo entre mãe e filha de classe média, para quem o encontro se dará apenas em pequenos gestos ou em olhares, como quando dividem um sanduíche em frente à televisão.

Os personagens – principalmente as crianças – parecem aprisionados: da janela do apartamento em Ipanema, Rayane observa a rua e bate no vidro: tenta chamar a atenção de alguém lá embaixo, mas também repete o clichê de algum filme de cadeia. Mais tarde, o orfanato também aparecerá como prisão. O uso de lentes teleobjetivas e de planos que recortam a cidade – numa negação à profundidade de campo e ao plano mais aberto, aqui bastante raros – reforça, na estética da imagem, essa sensação.

Sempre silenciadas (ninguém dá atenção ao que dizem, nem nelas acreditam), as crianças passam por todos esses diversos tipos de cárcere. Apartados de sua mãe, só lhes resta uma espécie de sebastianismo bastante pessoal, uma crença inquebrantável de que ela – a mãe – um dia retornará. Um sentimento de “ausência” que se alastra, conferindo ao filme seu ritmo lento (como o das prisões) e seus silêncios. O Rio de Janeiro aparece como cárcere, seja no bairro de classe média alta (gradeado), nas áreas próximas ao Centro e à Zona Sul (cercados por tapumes de obras) ou na periferia (em ruínas mas cercado, literalmente, por novos empreendimentos imobiliários). Os deslocamentos são difíceis: o trânsito é agressivo; os terminais de ônibus urbanos, caóticos e confusos; a sinalização nas paradas é insuficiente: não parece um lugar próprio à circulação de pessoas, mas antes a seu cerceamento, sua contenção: uma cidade-cárcere para um “rebanho” de seres humanos.

Esse Rio sombrio e incômodo revela-se quando nuvens negras de tempestade encobrem o Corcovado ou quando, na casa de classe média, relâmpagos e trovões lembram algum antigo filme de terror talvez estrelado por Vincent Price. Nesse subtexto que flerta com o macabro, as vítimas são todos os moradores da cidade, a começar pelos mais fracos e/ou indesejados: crianças, pobres etc. O algoz está além da cidade do Rio: trata-se de uma lógica voraz de destruição e reconstrução – e, nesse sentido, pela recorrência das placas e tapumes de obra, Campo Grande ficará para a história como um dos filmes definitivos das obras urbanas para a Olimpíada no Rio em 2016, que “desmontaram” o espaço urbano do Rio (da mesma maneira que a casa de Regina é desmontada e que a periferia, desde há muito tempo, já foi desmontada e vendida à especulação imobiliária).

No filme de Kogut, a ausência da mãe é também metáfora da ausência de um Estado capaz de notar os excluídos e os “indesejados”. Um Estado ao qual resta apenas endereçar uma carta muito precária (feita de garranchos), sem saber se ela, um dia, encontrará seu destinatário. Missiva em forma fílmica, Campo Grande é esta carta possível num momento de escuridão.
(Publicado originalmente no Caderno Pensar, A Gazeta, Vitória, 13 de agosto de 2016.)
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