Como falar de Emilia Pérez sem considerar a expectativa provocada por seus materiais publicitários, suas treze indicações ao Oscar, as polêmicas envolvendo sua atriz principal, comentários lidos ou escutados aqui e ali? Ainda que elementos para além (ou aquém) do próprio filme não devessem importar, ao menos em um primeiro momento, é inevitável que a reação à obra sejam, digamos assim, "recalibradas" no choque entre as expectativas criadas e a efetiva visão do filme. Mesmo indesejáveis, é difícil evitar as expectativas. Cada vez mais rara é a chance de se assistir a um filme do qual nada se sabe, simplesmente entrar a esmo em uma sala escura qualquer, sabendo, quando muito, apenas o título do cartaz...
Uma expectativa contrariada: apesar do que se diz, Emilia Pérez não é um filme sobre pessoas transgênero. Ainda que o centro da trama seja a redesignação sexual do chefe do tráfico Manitas del Monte — após a qual passará a se chamar Emilia Pérez —, toda a situação é muito distinta da vivida pela imensa maioria das pessoas que fizeram ou anseiam fazer semelhante procedimento. Com recursos financeiros "ilimitados" (como afirma em uma cena), Manitas tem meios para conseguir o melhor tratamento médico possível. E, talvez ainda mais fora da realidade, em momento algum alguém se refere a Emilia como uma mulher trans. Como se a personagem transcendesse essa condição, como se fosse possível sair do masculino e ir diretamente ao feminino. Tornar-se não uma "mulher trans", mas apenas uma "mulher", destituída da história, da memória (e das dores) da transição.
Não se cobra aqui "realismo" de uma obra com tantos elementos tomados emprestados do musical, sua atmosfera oscilando entre a "realidade" dos fatos narrados e um espaço-tempo puramente teatral, com grande liberdade cênica, onde habitam o canto e a dança. Emilia Pérez, ao "esquecer" que a protagonista é uma pessoa trans, apenas endossa esta não é a questão central, mas sim a troca de identidade, entender o que sobrevive em alguém a partir do momento em que se resolve tornar-se um outro. Como em outras obras que tratam do tema, ainda que a velha identidade pareça superada, algo sempre resta do passado. Algo que em algum momento será revelado e que, de uma hora para outra, mostrará como algo da antiga identidade pode mostrar indelével.
Emilia Pérez — é claro — tem seu momento de revelação, assim como outro grande filme feito sobre a reconstrução de uma identidade (realizado por um dos diretores que melhor trabalharam esse tema), A History of Violence (Marcas da violência, 2005), de David Cronenberg, em que o personagem de Viggo Mortensen, de uma hora para outra, tem sua identidade colapsada em frente à sua família enquanto seu passado, que ele imaginava superado, retorna. Não é coincidência o mesmo ator ter interpretado Sigmund Freud em outro filme do diretor, A Dangerous Method (Um método perigoso, 2011). Como o recalque, o passado nunca se apaga por completo. E, em dado momento, imerge à consciência.
Emilia Pérez mostra como o contemporâneo exige que cada pessoa construa uma identidade — e os problemas envolvidos nesse processo. Assim, ganha outra dimensão a cena no tribunal, logo no início, em que somos apresentados à advogada Rita Mora Castro (Zoe Saldanha). Frente ao juiz, enquanto seu chefe repete, como se fossem dele, as palavras que ela passou a noite escrevendo, Rita mostra uma identidade partida: apesar de seu talento ser a principal razão da absolvição do acusado, ela mesma não acredita em sua inocência. Entre o que Rita representa e o que de fato acredita, há um abismo — única razão (além, é claro, do dinheiro) para que aceitar a missão de organizar a cirurgia do capo traficante.
Não só Manitas / Emilia, mas também Rita quer construir para si uma nova identidade. Mas, diferentemente daquela, a advogada não tem tanta certeza de onde quer chegar. Em um momento, ela parece resumir alguns dos dilemas das mulheres contemporâneas: quando bem-sucedidas, mas sem família ou filhos, é como se algo lhes faltasse (ao avesso, quando com família e filhos, mas sem uma carreira profissional, outra coisa lhes falta). A exigência de ser bem-sucedida em "todos" os aspectos da vida cria uma espécie de armadilha da qual a maioria das mulheres contemporâneas (cis ou trans) acaba prisioneira. Sempre em falta, com mais pratos a equilibrar que tempo para conseguir equilibrá-los.
Com Rita não seria diferente: bem-sucedida, sente falta de uma relação amorosa, de uma família, de filhos. De forma parecida, ainda que a cirurgia tenha sido bem-sucedida, Emilia sente-se incompleta e deseja recuperar o contato com seus filhos e, talvez — ao menos durante um momento —, com sua esposa, que, assim como o resto do mundo, acredita na história da morte de Manitas. Mesmo morto o traficante, seu amor paternal sobrevive. Rendendo-se a ele, Emilia decide procurar as crianças para, sob outro nome, recuperar algum tipo de relação com elas.
Também por isso os elementos de musical cabem tão bem a Emilia Pérez. Território da
irrealidade e da fantasia, o musical exacerba a teatralidade e a máscara das situações. Se o mundo é um grande teatro, cada pessoa precisa aprender a representar seu papel (seus papéis). Alguns precisam apagar uma parte de seus corpos e assim se reconstruirem, se reinventarem. De
forma menos drástica, outros precisam assumir atitudes e
submeter-se a certas expectativas; cumprir certos rituais e repetir, de
forma às vezes mecânica, um sem número de frases feitas, que parecem
criadas outrem. Desejar desejos que nem sempre parecem ser seus.
No México, onde se passa grande parte da trama, Emilia Pérez foi rechaçado por retratar o problema do narcotráfico (e suas consequências) de maneira supostamente superficial. (Também não ajuda muito que o diretor do filme seja francês e que ninguém do elenco principal seja mexicano.) Mas, novamente, como exigir "realismo" de um musical? Começamos falando de expectativas e é disso que se trata: como esperar, de um filme que dialoga de perto com o musical, uma visão mais "realista" de seus temas?
Ainda que trate de questões às vezes duras, o tom de fantasia que atravessa Emilia Pérez impede, entre outras coisas, que a personagem sofra qualquer preconceito ou violência pelo fato de ser uma mulher trans. De maneira similar, as marcas do melodrama (por exemplo, na revelação da antiga identidade ou na possibilidade de redenção da personagem) conferem um sabor supostamente "latino-americano" à trama.
Musical marcado por toques de "realismo-mágico" (como entendido por um europeu que parece deixar de lado tanto o realismo quanto a mágica) e de latinidade (também pensada a partir de clichês), Emilia Pérez parte de duas questões prementes (as pessoas trans e as vítimas do narcotráfico) para tocar nos problemas de identidade (e identitários) tão presentes no contemporâneo. O que ajuda a explicar seu fascínio e seu alcance, ainda que o filme de Audiard não chegue a se aprofundar nessas questões.
Como se trata de uma grande fantasia muscial, território em que tudo pode acontecer, habitado pela música, pela dança, pelas luzes e cores, por mirabolantes movimentos de câmera, talvez os problemas de Emilia Pérez possam afinal ser perdoados.
Ou não (a depender da expectativa da plateia).
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