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22 August 2019

once upon a time... in hollywood (2019)


Nove notas sobre o (nono) filme de Quentin Tarantino:

1. Como esperado nos filmes do diretor, Era uma vez... em Hollywood está repleto de referências cinéfilas. Quem gosta de passatempos do tipo "ligue os pontos" ou "jogo dos sete erros" pode encontrar prazer em identificar a maior quantidade possível delas. Para quem não se incomoda em trapacear um pouco, pode-se sempre recorrer às ferramentas de busca online. À parte a diversão, alguns chamarão "autorreferência" ao que outros preferirão "narcisismo barato". Para estes, é preciso lembrar que nenhum elenco com Leonardo diCaprio e Brad Pitt pode ser impunemente chamado de "barato". "Narcisismo", talvez; "barato", nunca.

2. Mesmo sem ser barato, foi bem pago. Entre os coadjuvantes, a hippie caronista de Margaret Qualley ou a atriz mirim de Julia Butters magnetizam suas cenas: estreantes (ou quase) com atuações de veteranos. Tarantino, goste-se dele ou não, é excepcional diretor de atores, apesar de seu insistente gosto pela caricatura. (Aliás, quem poderia interpretar os bípedes mais elegantes da recente história universal - Bruce Lee, Steve McQueen - e ao mesmo tempo evitar a caricatura?) Pode-se notar que o Oscar fez bem a DiCaprio, um bom ator que, até receber a estatueta, parecia obcecado em causar boa impressão, em realizar qualquer "esforço a mais" que pudesse servir ao breve clipe que ilustra a indicação ao prêmio. (De certa maneira, deu certo: venceu por uma interpretação marcada por toda sorte de excessos.) Em Era uma vez... em Hollywood, ao invés de esforço, o ator mostra fluidez, uma capacidade (invulgar) de ir, em segundos, da insegurança à histeria; da angústia à empáfia. E, se DiCaprio tende ao peso, Brad Pitt é todo leveza. (E a leveza, sabe-se, é a matéria-prima de toda grande atriz e de todo grande ator.)

3. Cachês e suas correlatas crises de insegurança são um dos motes centrais em Era uma vez em... Hollywood. Os inseparáveis amigos são as duas faces da indústria, ambos afetados pela deterioração das condições do mercado de trabalho. Com dificuldades para encontrar oportunidades, o dublê conta com a interferência (ou insistência) do amigo famoso. E, como se Hollywood houvesse inventado o Uber, vemos um trabalhador (da indústria de cinema) à disposição por tempo indeterminado (no set, vestido com o figurino etc.), apesar de não estar sob nenhuma espécie de contrato além de um mero acordo verbal. E ali ele permanece, a esperar um chamado que talvez nunca ocorra, sob a ameaça de ser dispensado a qualquer momento, por qualquer motivo, seja ele fútil (uma briga) ou grave (a suspeita de feminicídio). Por outro lado, a vida também não é exatamente mais fácil para o ator-quase-celebridade (eis a questão) que não encontra trabalhos que correspondam ao seu currículo (ou a suas expectativas de carreira). Vemos o que qualquer um que já frequentou sets de cinema conhece bem: atrizes, atores (ou dublês) são feitos de muita espera - e, por vezes, de muitos cigarros. Em meio a tudo isso, Tarantino acena a certa "inteligência da indústria" (o "gênio do sistema" de Thomas Schatz), na figura de um produtor judeu (um Al Pacino também caricato) que busca alternativas que, se hoje, de forma anacrônica, soam bastante razoáveis, à época pareciam muito longe disso. (Mas Tarantino esquece de dizer a seu público que Hollywood, em fins dos anos 1960, enfrentava grave crise econômica. Sobre o tema, ver The Kid Stays in the Picture, sobre Robert Evans, controverso produtor de alguns sucessos do período como... O bebê de Rosemary.)

4. Ainda sobre as questões salariais, Tarantino apresenta um teorema em que os cachês pagos têm valores inversamente proporcionais à autoconfiança daqueles que os embolsam. Se os astros principais (seja Rick Dalton, personagem de DiCaprio, seja Bruce Lee, personagem de Mike Moh) a todo tempo duvidam de si mesmos, o dublê interpretado por Brad Pitt demonstra uma confiança inabalável (em si, em seu carro, em sua cadela), uma quase-empáfia feita sob medida para este ilustre desconhecido. Quando sobe em um telhado para consertar uma antena, ele sabe que aquele ponto de observação privilegiado (de lá pode-se espiar a casa dos vizinhos) é também um ponto privilegiado para ele próprio ser observado. Não demora para a autoconfiança aparecer mais uma vez, com um despir-se da camisa e um gesto lânguido para acender (ei-lo novamente) o cigarro. Mais tarde, outro personagem lembra que Booth tem sobrenome de assassino e sob ele paira uma grave suspeita (do qual o filme parece isentá-lo). Mas do alto do telhado (ou nos fundos de seu trailer emporcalhado), o dublê parece acreditar que a) jamais cometeu qualquer crime, ou b) não merece punição por qualquer crime cometido. Temos um Raskólnikov galã de Hollywood, reverso perfeito de outro Raskólnikov, muito mais odioso (e que, diferentemente do personagem de Crime e castigo, parece jamais ter experimentado qualquer espécie de remorso ou arrependimento): Charles Manson.

5. Tarantino está longe de um Dostoiévski e seu filme não é um Pickpocket. Ainda assim, a impunidade parece habitar seus interesses. Uma impunidade, é preciso frisar, um tanto seletiva: se alguns podem continuar livres, mesmo tendo talvez assassinado as esposas, aos outros é reservado o lança-chamas e a incineração sumária. É como se Tarantino fosse um juiz bastante peculiar, que estabelece seus vereditos não após o crime ser cometido, mas antes: àqueles que já assassinaram, a liberdade; aos que, suspeitamos, podem eventualmente vir a cometer um crime, uma execução sumária, odiosa, sem tribunal. A bem da verdade, nós (público sanguinário e bem informado, leitor assíduo de redes sociais) não sabemos de nada. Mesmo assim acreditamos fortemente, a partir de evidências tiradas de ilibadas páginas da internet, que alguns merecem morrer a fortiori, para deleite das plateias. (Aqui, o tom de indignação, justiça seja feita, talvez não esteja na conta do filme de Tarantino. No dia em que escrevo estas linhas, a se embaralhar com as imagens do filme, o governador do Rio de Janeiro comemora sem constrangimento a morte de um homem que havia sequestrado um ônibus durante o trajeto sobre a ponte Rio - Niterói.) Tarantino (Witzel?) possui bom timing histórico e retoma o western (um de seus gêneros de devoção - do cineasta, não do governador) ao mesmo tempo em que o mundo ocidental parece retomar um dos problemas centrais do "gênero norte-americano por excelência": como estabelecer a lei frente à barbárie? (E se alguns westerns retrataram a barbárie ao lado dos povos originários, afirmamos aqui que ela está, como sempre esteve, muito mais ao lado dos "brancos civilizados", esses Brad Pitts de antanho.)

6. Era uma vez... em Hollywood é abertamente saudosista e, como bem apontou João Pereira Coutinho na Folha de S. Paulo, escancaradamente reacionário. Se, em um western de John Ford, a lenda era mais forte que a história - e imprima-se a lenda -, em Tarantino é a mentira que supera a lenda. Logo, imprima-se a mentira, mesmo porque ninguém parece se importar muito... A associação direta, quase didática, do movimento hippie à família Manson e a posterior inferência entre estes e os nazistas de celuloide (tanto uns quanto os outros acabam mortos pelo fogo do lança-chamas), parece dar fôlego a esse mal-estar contemporâneo: o revisionismo histórico irresponsável. Pelo menos desde Bastardos inglórios, Tarantino gosta de reescrever a história como um grand guignol farsesco. (Qualquer coincidência com os terraplanistas ou com os negacionistas da catástrofe climática não é mera coincidência.) Mas, em meio a tudo isso, o garimpo musical do realizador, com músicas pop dos anos 1950 e 1960, provoca cúmplices sorrisos no espectador informado, e sorrisos cúmplices (a sensação de pertencimento a um grupo) têm sido, nos tempos que correm, a forma mais eficaz de se encerrar qualquer debate. E nenhum senão poderá fazer frente às vozes de uma Aretha Franklin, de um Paul Simon, de um Billy Stewart.

7. Ao invés de manipulação do tempo histórico, poderíamos dizer "manipulação do tempo cinematográfico". Tarantino sempre foi mestre no controle das durações (nas cenas) e das temporalidades (nas estruturas narrativas). Aqui, esse traço aparece elegante como nunca. Nesse sentido, trata-se de um dos melhores trabalhos do realizador, com um ritmo bastante peculiar, diríamos mesmo "sedutor", mérito também de Fred Raskin, responsável pela montagem deste e dos dois longas anteriores do diretor (assumindo de vez o lugar da falecida Sally Menke, que montou todos os demais longas de Tarantino). Se em Os oito odiados o andamento era um tanto auto-indulgente (e alguns minutos a menos talvez não fizessem mal ao filme), Era uma vez... em Hollywood apresenta ritmo mais uniforme. (Exceção feita à sequência final, que, para o bem e para o mal, destoa radicalmente do resto.)

8. Ainda sobre a manipulação da duração, é preciso lembrar que o modelo maior de Quentin é Sergio. Não Corbucci, explicitamente citado em Era uma vez... em Hollywood, mas "o outro Sergio", implicitamente citado. O cinema de Tarantino parece sempre debater-se nessa tentativa de equilibrar-se entre os dois Sergios, um dado ao excesso, outro ao rigor formal.

9. Os duplos e os espelhamentos possuem ainda outra dimensão: o filme inicia-se com uma entrevista na TV e termina (há uma cena durante os créditos de encerramento) com um comercial para a TV. Imagens em preto e branco, com os personagens falando diretamente à câmera, interpelando o espectador. A televisão emoldura Era uma vez... em Hollywood, o que não deixa de ser um tanto irônico em um diretor tão ostensivamente cinéfilo. Televisão aqui vista como propaganda, seja do seriado, seja (ele novamente) da marca de cigarros, e que parece trazer em si uma ideia de engano. Na derradeira ação do filme, o ator se rebela contra sua imagem duplicada, uma boa síntese do que se acaba de assistir. Na cena do início, o outro duplo do ator (seu dublê) diz que seu trabalho é, para usarmos o bom português, "carregar o piano" - outro bom resumo da questão. Se Era uma vez... em Hollywood corresse ao contrário, da última síntese (o ímpeto autodestrutivo) à primeira (a necessidade de se escamotear a ideia de trabalho nas imagens produzidas por Hollywood), estaríamos em outro filme, um dos melhores sobre os bastidores da indústria de cinema: A cidade dos desiludidos (Two Weeks in Another Town), dirigido por Vincente Minnelli e recuperado em O desprezo (Le Mépris), de Godard. Mas o que tudo isso pode quer dizer? Talvez que a auto-negação blasé está para a autodestruição assim como um filme está para seu making of. Ou, se passarmos da realização para a crítica, trata-se apenas deste autor que, ciente dos prazeres da citação cinéfila, decidiu demonstrar seus invejáveis dotes em provocar corridas às ferramentas de busca online.

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