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05 March 2025

flow (2024)

Se o dilema que assola nossa época é a iminente catástrofe climática, Flow (Gints Zilbalodis, 2024) surge envolto em um cada vez mais raro espírito de otimismo, um pequeno vislumbre de como "adiar o fim do mundo", conforme o título do livro de Ailton Krenak. Centrado na figura de um gato que precisa escapar de uma inundação (e que vai encontrar outros animais pelo caminho), a animação de Gints Zilbalodis estabelece, logo em seu início, um sentimento apocalíptico a partir da fúria das águas que, sem aviso, começam a tomar tudo ao seu redor.

Não há pessoa humana em todo o filme, mas apenas indícios de civilização: construções abandonadas que remetem à idade antiga e também detalhes mais contemporâneos, como um lápis e uma resma de folhas de papel A4. Talvez, na narrativa do filme, a humanidade já tenha deixado de existir, com o planeta agora ocupado apenas por plantas, animais — e pela força das águas. Ainda mais importante que a ausência da figura humana, não existe em Flow qualquer resquício de linguagem verbal. Diferentemente do clichê de muitas animações (as produções de Walt Disney como modelos óbvios), o filme de Zilbalodis não mostra animais antropomorfizados, permitindo que sejam "apenas" animais. Assim, nunca fazem uso de língua humana, em nenhum idioma conhecido. Os vestígios humanos identificáveis não são textuais, mas visuais: desenhos, esculturas, arquitetura. Como se, ao contrário das coisas que podem ser vistas, a palavra, sem seus falantes, estivesse destinada a desaparecer.

Mas ausência de língua não significa ausência de linguagem. Os corpos falam. As expressões faciais, a posição do corpo, os olhos arregalados ou apertados, patas que se levantam, cabeças altivas ou temerárias etc. Qualquer pessoa que já conviveu com um gato poderá facilmente identificar os gestos do protagonista: as orelhas abaixadas e os olhos arregalados quando com medo; o espreguiçar quando acorda; o ato de afiar as garras em uma superfície de madeira; a maneira de se defender quando atacado. Assim como ele, cães, capivaras, macacos, aves e até um gigantesco cretáceo podem ter suas expressões facilmente interpretadas. Entre tantos outros méritos, uma coisa importante em Flow é nos lembrar mais uma vez como o cinema, ao lançar mão da expressividade corporal, pode prescendir da língua humana.

Se resta algo antropomorfizado nos diferentes personagens é sua inesperada disposição para colaborar. Não estamos no estado de natureza como entendido por Thomas Hobbes ao cunhar a expressão "o lobo do lobo do homem". Aqui, os animais parecem distantes (um talvez infundado otimismo nos obrigaria a dizer "mais próximos") do gênero humano como Hobbes o entende ao demonstrarem disposição para, aos trancos e barrancos e sem qualquer idealização, trabalhar em equipe. Menos um gesto de solidariedade que de sobrevivência, menos um ato de idealismo que de caráter, esses animais, alheios ao amor ou ao ódio, se mostram capazes de auxiliar uns aos outros. Se porventura conhecem o rancor e a maldade (quando uma ave machuca as asas de uma outra), também aprendem a suportar as diferenças uns dos outros. E a aprender com elas.

Palavras grandiloquentes — maldade, colaboração, aprendizado —, que nem sempre estão presentes quando se escreve sobre cinema, parecem brotar naturalmente ao tentarmos dar conta de Flow. A fábula nos convida a ir além de uma dimensão humana (ou, ao lembrarmos Freud, neurótica) para pensar em "grandes temas": a sobrevivência de um ecossistema, a irrefreável força na natureza, a impermanência das coisas (especialmente as de dimensão humana), a inexorabilidade do tempo e os inescapáveis grandes ciclos que sem aviso começam e, em certo momento, terminam — às vezes para, logo em seguida, recomeçarem.

Um mundo que exige menos pensamento que agilidade ou "fisicalidade", que aparece nas várias cenas com animais correndo em fuga, perseguições, saltos, mergulhos nas águas, voos, combates. Um verdadeiro corpo a corpo com a natureza e o mundo ao redor dos personagens, que excita o olhar (e a epiderme) da plateia. Fisicalidade construída também a partir de uma trilha sonora que privilegia ritmos e atmosferas, enquanto apenas pontualmente exige respostas mais emocionais da plateia.

Em meio à essa constante luta pela sobrevivência, Flow ainda guarda um momento de mistério e deslumbramento. Sem anúncio ou explicação. E que permanece na memória depois da saída da sala de cinema.

O filme começa e termina com uma imagem espelhada, um reflexo. Além disso, os macacos estão sempre obcecados por suas próprias imagens refletidas em espelhos, o que pode ser lido de várias maneiras: em parte como o reconhecimento de uma identidade (um "eu" apartado do resto do mundo), em parte um momento de reflexividade, quando se adentra no território da fantasia e da abstração, no mundo das possibilidades (diferente da concretude física do mundo). Talvez o convite do filme de Gints Zilbalodis seja esse: encararmos aqueles animais como nossos reflexos, como outras possibilidades de existência dentro de um mundo cada vez mais próximo do colapso. Um mundo cada vez menos humano e mais animal. Sem que isso seja necessariamente ruim. Muito pelo contrário.

Ou talvez uma sugestão para que, através do espelho do cinema, sejamos capazes de vislumbrar respostas para a pergunta que fizemos na abertura do texto sobre o que ainda pode ser feito para adiar o fim do mundo.

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