A retrospectiva dedicada a Alfred Hitchcock na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, é uma ótima oportunidade para ver alguns dos maiores clássicos da história do cinema em tela grande, com boa projeção de som e imagem. De 6 a 16 de março, na Sala Grande Otelo e também na área externa, em projeções ao ar livre, serão exibidos 14 títulos: Os 39 degraus (The 39 Steps, 1935), único representante da chamada fase britânica; Rebecca, a mulher inesquecível (Rebecca, 1940), que marca sua chegada aos EUA e o começo da parceria com o produtor David O. Selznick; Interlúdio (Notorious, 1946), primeiro filme da fase estadunidense produzido pelo próprio Hitchcock; Festim diabólico (Rope, 1948), com seu até hoje impactante exercício de longos planos-sequência. Além desses, algumas obras maiores do momento mais conhecido da carreira do diretor, entre a década de 1950 e o início dos anos 1960, com Pacto sinistro (Strangers on a Train, 1951), Disque M para matar (Dial M for Murder, 1954), Janela indiscreta (Rear Window, 1954), Ladrão de casaca (To Catch a Thief, 1955), O homem que sabia demais (The Man Who Knew Too Much, 1956), Um corpo que cai (Vertigo, 1958), Intriga internacional (North by Northwest, 1959), Psicose (Psycho, 1960), Os pássaros (The Birds, 1963), e também um de seus últimos grandes trabalhos, realizado novamente na Inglaterra: Frenesi (Frenzy, 1972).
Uma das razões que ajudaram a transformar Hitchcock em um dos diretores mais cultuados da história do cinema foi sua recepção pela crítica francesa dos anos 1950. Mais tarde conhecidos como cineastas ligados à nouvelle vague, alguns jovens críticos, como Claude Chabrol, e outros nem tão jovens assim, como Éric Rohmer, dedicaram textos importantes à obra do britânico. Mas o evento mais importante para a divulgação do chamado mestre do suspense foi a publicação, em 1966, do livro com as entrevistas realizadas por outro crítico e diretor da turma dos Cahiers du Cinéma, François Truffaut, que esmiuçava a obra de Hitchcock filme a filme. Hitchcock / Truffaut (no original, Le Cinéma selon Alfred Hitchcock) logo se transformou em um clássico dos estudos de cinema, mostrando a futuros realizadores, muitos deles ligados às primeiras escolas que começavam a surgir mundo afora durante os anos 1960, que o acaso jamais fez parte da gramática hitchcockiana. Pelo contrário, muito raciocínio e exaustiva preparação estavam por trás de cada momento de sua obra cinematográfica, que deveria espelhar, a cada plano, a cada detalhe, os desejos e intenções de seu realizador.
Hitchcock / Truffaut também ajudou a entronizar a figura do diretor de cinema como o principal responsável pelas opções estéticas de um filme, questão mais tarde muito debatida e sobre a qual existe um interessante estudo publicado no Brasil, O autor no cinema, de Jean-Claude Bernardet e Francis Vogner dos Reis. Em resumo, apesar do diretor desempenhar uma função central, cinema é sempre uma realização coletiva. O mesmo vale para o próprio Hitchcock, que, a partir da década de 1950, quando passa a ser seu próprio produtor e ter ainda mais liberdade para escolher seus projetos, consegue estabelecer uma equipe mais ou menos estável — Robert Burks na fotografia (12 filmes), George Tomasini na edição (nove filmes), Bernard Herrmann na trilha musical (sete filmes), Edith Head nos figurinos (seis filmes), Hal Pereira (cinco filmes) e Henry Bumstead (três filmes) na direção de arte, John Michael Hayes no roteiro (quatro filmes), Saul Bass no desenho dos créditos de abertura (três filmes). Não por acaso, neste momento, sua obra atinge o ápice.
Além disso, Hitchcock é talvez o cineasta que melhor realiza uma síntese das quatro grandes escolas do cinema silencioso, como identificadas por Gilles Deleuze em A imagem-movimento: a estadunidense, a alemã, a soviética e a francesa. Que outro grande realizador, trabalhando na estrutura de estúdio de Hollywood, conseguiu construir narrativas tão fluidas (como na tradição estadunidense) e, ao mesmo tempo, realizar um exercício de montagem que não deixa nada a dever aos melhores momentos do cinema sovietico, como na famosa sequência do chuveiro em Psicose? Quem melhor absorveu a importância da atmosfera (como nas sombras de Rebecca ou Pacto sinistro) e o gosto pelos grandes cenários do cinema alemão (como na sequência final de Intriga internacional, no monte Rushmore) e, ao mesmo tempo, lançou mão de momentos oníricos, tão ao gosto do cinema silencioso francês, como em Quando fala o coração (ausente da retrospectiva) ou Um corpo que cai?
Deleuze, no capítulo final desse importante livro, faz ainda um belo resumo da obra do realizador:
Hitchcock introduz a imagem mental no cinema. Isto é: ele faz da relação o objeto de uma imagem, que não só se acrescenta às imagens-percepção, ação e afecção, como as enquadra e transforma. Com Hitchcock aparece uma nova espécie de “figuras”, que são figuras de pensamentos. Com efeito, a própria imagem mental exige signos particulares que não se confundem com os da imagem-ação.
Conhecer os filmes de Hitchcock nos aproxima do cinema que veio antes dele. Herança que, em seus filmes, aparece em um esforço de síntese e superação. Projeto estético que está, antes de mais nada, a serviço da narrativa, na identificação da plateia com os personagens (usando os sempre citados processos de transferência de culpa), na constante preocupação em entreter (pelo suspense ou por um muito peculiar senso de humor) etc.
Hitchcock é um esteta mas, antes de tudo, um contador de histórias. Em seu livro de entrevistas com importantes realizadores do cinema estadunidense, Peter Bogdanovich conta como, durante uma breve viagem de elevador, o britânico prendeu a atenção de todos ao seu redor ao tentar descrever uma imaginária cena de crime, caprichando na voz estupefata e na gesticulação das mãos enquanto tentava dar conta do indizível da imagem: "O cadáver... você não imagina... é impossível descrever... e o sangue... o sangue, Peter...".
Ao chegarem ao térreo, Bogdanovich notou como as pessoas hesitavam em sair, possivelmente querendo ouvir mais. Nessa "história de elevador", como Hitchcock a define, as reticências são o ponto de fuga para onde se lança a imaginação do ouvinte. Uma estratégia de montagem, realizada em pequena escala, que deixa lacunas para serem preenchidas pela imaginação de cada ouvinte (ou, na sala de cinema, cada espectador). Um desejo de imantar a atenção do público que pode ser encontrado em todos os seus trabalhos.
De tantas maneiras, Hitchcock é incontornável. Ver alguns de seus melhores filmes em tela grande, com boa qualidade de som e imagem, configura um imenso prazer para qualquer amante do cinema, seja para quem está reencontrando sua obra ou tendo a chance de conhecê-la pela primeira vez.
A programação completa da retrospectiva Alfreh Hitchcock está disponível aqui.
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