Na noite de domingo de carnaval, o Oscar de melhor filme internacional para Ainda estou aqui (Walter Salles, 2024) — primeira vez que um brasileiro vence nesta categoria — e a derrota de Fernanda Torres, que concorria como melhor atriz pelo filme de Walter Salles, para Mikey Madison, de Anora (Sean Baker, 2024), causaram reações de, respectivamente, euforia e decepção nas ruas em festa e nas redes sociais do Brasil. Enquanto o prêmio para o filme de Salles foi comemorado como uma conquista esportiva, com direito a gritaria e fogos de artifício, a derrota de Torres gerou indignação e um sentimento de que o Oscar, no fundo, não seria um prêmio digno de respeito.
Indo de um extremo a outro em uma virtual escala de entusiasmo, tais reações poderiam ser usadas para apontar certo caráter esquizofrênico do ethos brasileiro. Porém, mais importante que qualquer improvisado diagnóstico social, é preciso analisar o que significa o Oscar e como seus prêmios são dados — no geral, de maneira talvez bem mais aleatória do que gostaria a frustrada torcida pela vitória de Fernanda Torres.
Parece desnecessário reinterar elogios à interpretação da atriz para Eunice Paiva, reconhecida, entre outros, com o Globo de Ouro de melhor atriz dramática. A contenção, aliada à força emocional de seus gestos e expressões, resultado das escolhas de atriz e diretor, revelam um repertório construído durante décadas, no drama e na comédia, por uma atriz que já tem em sua trajetória um prêmio de interpretação feminina no Festival de Cannes por Eu sei que vou te amar (Arnaldo Jabor, 1984).
Se um espírito nacionalista esperava o Oscar para um filme brasileiro (láurea já conquistada por outros países latino-americanos como Argentina, com duas estatuetas, México e Chile), a derrota de Torres ecoou de maneira dolorida a de sua mãe, Fernanda Montenegro, que há 27 anos concorreu na mesma categoria por Central do Brasil (1997), do mesmo Walter Salles, quando a vencedora foi outra jovem atriz, Gwyneth Paltrow, então com 25 anos (mesma idade de Mikey Madison), por Shakespeare apaixonado (John Madden, 1998) — roteiro incrivelmente parecido, com a exceção de que, em 1998, A vida é bela (Roberto Benigni, 1997) venceu como melhor filme internacional.
Nestas quase três décadas, muita coisa mudou na indústria cinematográfica estadunidense (e, para ecoar a arquifamosa frase de Lampedusa, pouca coisa mudou na indústria cinematográfica estadunidense). Se neste período a Academia se abriu para novos valores, tendo premiado três mulheres com o Oscar de melhor direção (o que jamais tinha acontecido), com um número crescente de pessoas negras indicadas em diversas categorias e as surpreendentes vitórias de melhor filme para um francês (O artista, de Michel Hazanavicius, em 2012) e um coreano (Parasita, Bong Joon-ho, em 2020), ao mesmo tempo os velhos valores e fórmulas de Hollywood ainda ditam boa parte dos resultados. Ao abrir mão de premiar duas atrizes brasileiras, coincidentemente mãe e filha, em prol de duas jovens apostas, o recado é claro: a Academia está aberta à renovação e à diversidade, mas sempre mantendo, na medida do possível, a hegemonia do estrelato para atrizes formadas dentro da indústria estadunidense — ou que joguem por suas regras.
Diferentemente dos festivais europeus, em que um júri decide, o Oscar representa um amplo colegiado de votantes. Nesse universo, é sempre possível que nem todas as pessoas tenham visto todos os filmes em disputa — o que depende de campanhas de marketing e da visibilidade dos concorrentes — ou que simplesmente votem, como acontece em qualquer eleição, mais pela emoção que pela razão. Assim, ainda que a interpretação de Torres seja primorosa e ainda que os termômetros (como o prêmio do sindicato dos atores) indicassem altas chances de uma vitória de Demi Moore por A substância (Coralie Fargeat, 2024), ganhou uma jovem atriz em um filme que — antes de seus cinco prêmios no Oscar — já havia vencido o Festival de Cannes. Decepcionante? Para as derrotadas, sim. Injusto? Bem... sem querer ser muito em cima do muro (e apesar de termos nossas preferências e nossas torcidas), podemos dizer que cada uma das cinco performances, dentro de suas propostas, apresentam seus pontos positivos e negativos. A boa notícia (se é que ela existe) é que, ao invés da contenção de Torres, venceu um trabalho de grande qualidade física, coisa que o Oscar nem sempre soube valorizar — vide quantos grandes comediantes nunca tiveram suas carreiras devidamente reconhecidas.
A vitória do filme de Salles, que traz à tona o tema da ditadura civil-militar brasileira e dos desaparecidos polítcos, não agradou a uma esquerda mais combativa — que talvez preferisse uma denúncia mais direta, talvez com acusações mais explícitas aos responsáveis pela morte de Rubens Paiva. E também não agradou a uma extrema direita que nega sequer a existência de tais crimes ou sua gravidade. Apesar disso, a estatueta dourada conseguiu criar um frágil sentimento de união nacional misturado com a grande festa de rua que é o Carnaval.
Não haveria Ainda estou aqui, é claro, sem o livro de Marcelo Rubens Paiva ou sem o trabalho da Comissão Nacional da Verdade, que tentou responsabilizar aquelas pessoas que assassinaram e colaboraram no assassinato de militantes, políticos, artistas e de tantas pessoas comuns, anônimos que lutavam contra o regime de exceção no Brasil. Iniciativa do governo da presidente Dilma Rousseff, ela mesma presa e torturada durante os chamados "anos de chumbo", o relatório da Comissão tocou em traumas que corriam o risco de ficarem para sempre ocultados ou esquecidos. Abrir essa caixa de Pandora foi algo que muitos setores jamais perdoariam em Dilma — e que contribui para a perda de sua força política e a instauração do pedido de impeachment que, sem apresentar nenhuma prova contundente de má conduta, a tirou do poder.
Ainda estamos aqui (e todo carnaval tem seu fim). O Brasil venceu sua primeira estatueta de melhor filme internacional e Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, mesmo derrotadas, ainda são duas das maiores atrizes da história do cinema. E, tanto aqui como no resto do mundo, para alegria de uns e desgosto de outros, eleições seguem escolhendo seus vencedores mais pela emoção que pela razão. E assim segue a carruagem.
Tudo muda para tudo continuar do mesmo jeito.
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