. blog de Fabio Camarneiro

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28 August 2009

a morte

A morte é um tema fascinante. Quem pode se dizer a salvo da "iniludível"? O que pode ser dito sobre o morrer? Mistério maior.

O cinema já tocou nesse assunto de maneira invulgar. Lembro dois grandes filmes: um deles, A balada de Narayama (1983), de Shohei Imamura.


Em um vilarejo muito pobre, uma velha mãe, em idade avançada, aguarda o cumprimento de um antigo ritual: ao completar 70 anos, os velhos são levados ao topo de uma montanha e lá deixados para morrer.

A velha mãe prepara sua partida com grande zelo, como no poema de Manuel Bandeira:
consoada

quando a indesejada das gentes chegar
(não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
talvez sorria, ou diga:
- alô, iniludível!
o meu dia foi bom, pode a noite descer.
(a noite com os seus sortilégios.)
encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
a mesa posta,
com cada coisa em seu lugar.
Apesar de saudável, a velha mãe exige que o ritual se cumpra. Não se trata de teimosia: ela sabe que, mesmo quando seus braços não puderem mais trabalhar, sua boca ainda exigirá comida. Não é a tradição que está em jogo, mas a sobrevivência material do clã.

O problema, enfim, não é a iminência da morte, mas o destino daqueles que sobrevivem.

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blue velvet

Veludo azul (1986) lembra descargas elétricas: excita e entorpece ao mesmo tempo.

Durante as cenas na casa de Ben (Dean Stockwell), é notável a paródia a uma certa estrutura teatral: as cortinas imitam um proscênio. A performance da música de Roy Orbison se transforma em decalque de outra apresentação, quando Isabella Rossellini interpreta a canção que dá título ao filme.

Os habitantes desse mundo bizarro lembram bonecos de cera, personagens de cartum; os planos permanecem na tela alguns segundos além do convencional, causando estranheza; a atuação exacerbada de Dennis Hopper transforma Frank Booth numa sedutora e repulsiva encarnação do mal; a palavra "fuck" é repetida ad nauseum como uma espécie de mantra psicótico e fora-da-lei.

Tudo forma um grotesco teatro de marionetes, ao qual Lynch retornaria de maneira mais explícita em Mulholland Drive: no hay banda, no hay orquestra.


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david lynch

David Lynch

Para os interessados, um breve compêndio de materiais a respeito de David Lynch. Alguns trechos dos livros podem ser lidos no Google Books (mesmo não sendo a maneira mais desejável de se consultar um livro). Uma bibliografia extensa sobre o diretor está disponível no site da Universidade de Berkeley:
Livros
  • No Brasil, foi lançado o ensaio de Michael Atkinson sobre Veludo azul (Rio de Janeiro: Rocco). Em outros idiomas, existem alguns títulos de interesse:
  • Michel Chion. David Lynch. London: British Film Institute.
  • Thierry Jousse. David Lynch. Paris: Cahiers du Cinéma. (Grands cineastes; 8)
  • David Lavery (ed.) Full of secrets: critical approaches to Twin Peaks. Detroit: State University Press.
  • Todd McGowan. The impossible David Lynch.
  • Martha P. Nochimson. The passion of David Lynch: wild at heart in Hollywood. Austin: University of Texas Press.
  • Chris Rodley (ed.) Lynch on Lynch. Faber and Faber. (Reunião de entrevistas do diretor.)
  • Erica Sheen; Annette Davison. The cinema of David Lynch: American dreams, nightmare visions.
Capítulos de livros
  • Laura Mulvey. "Netherworlds and the unconscious: Oedipus and Blue velvet", em: Fetishism and curiosity. London: British Film Institute, 1996, pp. 137-154.
  • Vladimir Safatle. Construir estradas com ruínas: a estética do real de David Lynch. Posteriormente publicado como "A estrada perdida", em: Denilson Lopes (org.) Cinema dos anos 90. Chapecó: Argos, 2005. (Debates)
  • Um texto de Slavoj Žižek sobre Estrada perdida, "The art of the ridiculous sublime: on David Lynch’s Lost highway", foi publicado pela University of Washington Press, e depois lançado em Portugal como "David Lynch ou a arte do sublime ridículo", em: Lacrimae rerum. Lisboa: Orfeu Negro, 2008, pp. 231-271.
Artigos em periódicos
  • Thomas Caldwell, "Lost in darkness and confusion: Lost highway, Lacan, and film noir", Metro, n. 118, 1999, pp. 46-50.
  • Barbara Creed, "A journey through Blue velvet: film, fantasy and the female spectator", New Formations, n. 6, Winter, 1988, pp. 97-118.
  • Theresa Geller, "Deconstructing postmodern television in Twin Peaks", Spectator, vol. 12, n. 2, Spring, 1992, pp. 64-71.
  • K. George Godwin, "Eraserhead", Film Quarterly, 39, 1, Fall, 1985, pp. 37-43.
  • Philip Lopate, "Welcome to L. A.: Hollywood outsider David Lynch plunges into Tinseltown's dark psyche", Film Comment, vol. 37, n. 5, (Sept-Oct 2001), pp 44-50.
  • Amy Taubin, "In dreams", Film Comment, vol. 37, n. 5, (Sept.-Oct. 2001), pp 51-54.
Artigos online
Sites

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27 August 2009

lucrecia martel

Cada dia cresce a memória dos filmes de Lucrecia Martel.


Um desejo latente percorrendo os personagens femininos; agrupamentos familiares enclausurados (em casa, em hotéis); uma atenção especial para os pequenos acidentes do mundo (como o inusitado encontro ao som do theremin em La niña santa); um passo lento, que busca aquilo que habita o interior de seus personagens; os desencontros de toda espécie (o engano do olhar, os desvarios dos ouvidos, o mistério do outro); a sensação de um universo ao mesmo tempo tátil, corpóreo (cinematográfico) e divino, ritual (transcendente).

Aqui, uma entrevista a Chris Wisniewski, da Reverse shot, sobre La mujer sin cabeza (2008).

Aqui, texto meu sobre La niña santa na Cinética.

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marlene

Poucas figuras na história do cinema são tão sexualmente ambíguas quanto Marlene Dietrich.


Para além de uma espécie de "ícone gay", os personagens que Marlene criou em sete filmes realizados durante os anos 1930 e dirigidos por seu então marido Josef von Sternberg talvez antecipem as identidades flutuantes dos tempos atuais.

Sem Dietrich, o que seria de Sharon Stone em Instinto selvagem ou de Madonna em suas várias facetas, para ficar apenas em dois exemplos mais contemporâneos?

Em Vênus loira (1932), ela inverte os papéis sexuais com Cary Grant. A canção é "I couldn't be annoyed", de Leo Robin e Richard A. Whiting, numa versão em francês:


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oriente e ocidente

Disponível no Brasil como Pai e filha, Banshun (em tradução literal, "primavera tardia") foi realizado por Yasujiro Ozu em 1949, durante a ocupação norte-americana no Japão após o fim da Segunda Guerra.

Em uma sequência, durante um passeio de bicicleta de Noriko (Setsuko Hara), vê-se um anúncio da Coca-Cola.


O Japão começava uma modernização a toda velocidade, com as fronteiras abertas para a influência estrangeira. Um processo que transformaria o país, 40 anos depois de duas bombas atômicas, em uma das maiores economias do mundo.

Na imagem de Ozu, a propaganda de refrigerante aparece como um mastro fincado no nada, bandeira que marca a conquista de um território.

Com Os sete samurais, realizado cinco anos após Pai e filha, seria a vez dos EUA serem "invadidos" pelas imagens do Oriente. O filme de Akira Kurosawa funcionava como uma espécie de western de samurais (ou como um "chambara", gênero de filme de espada, povoado por decalques do velho Oeste americano). Seria refilmado nos EUA em 1960 como Sete homens e um destino.

Apesar de todas as barreiras impostas aos imigrantes, a colonização é sempre um caminho de mão dupla.

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26 August 2009

as cousas não têm significação: têm existência

A leitura da poesia de Alberto Caeiro, especialmente a parte 39 de O guardador de rebanhos, sempre me remete às estéticas realistas:
As cousas não têm significação: têm existência.
O realismo abandona o(s) simbolismo(s) e segue ao encontro das coisas do mundo... No cinema, temos Umberto D. (1952), de Vittorio de Sica.


André Bazin escreve sobre o filme:
Em Umberto D. (...) trata-se de tornar espetacular e dramático o próprio tempo da vida, a duração natural de um ser ao qual nada acontece em particular. (André Bazin, O cinema: ensaios, São Paulo: Brasiliense, p. 292)
Em outro texto, James Malpas diz:
A necessidade do realismo, tanto na arte como na vida, pode resultar da sensação de que a fantasia, a imaginação e a especulação desviaram a atenção humana, e que as coisas como elas são foram descartadas naquela área rotulada de "comum, rotineira, desinteressante". (James Malpas, Realismo, São Paulo: Cosac Naify, p. 7)
Tudo isso para dizer que o cinema brasileiro me parece mais interessante quando fala do que é "comum, rotineiro e desinteressante". Um tanto farto de análises sociológicas banais (as sérias sempre interessam), espero mais "simplicidade" (coisa deveras complexa) na observação do mundo.

As cousas não têm significação: têm existência.

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25 August 2009

o guardador de rebanhos | XXXIX

(Alberto Caeiro)

o mistério das cousas, onde está ele?
onde está ele que não aparece
pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
que sabe o rio disso e que sabe a árvore?
e eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas,
rio como um regato que soa fresco numa pedra.

porque o único sentido oculto das cousas
é elas não terem sentido oculto nenhum.
é mais estranho do que todas as estranhezas
e do que os sonhos de todos os poetas
e os pensamentos de todos os filósofos,
que as cousas sejam realmente o que parecem ser
e não haja nada que compreender.

sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: —
as cousas não têm significação: têm existência.
as cousas são o único sentido oculto das cousas.
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