. blog de Fabio Camarneiro

assine

arquivos

11 March 2016

califórnia (2015)


O que significa Califórnia, título do filme de Marina Person?

Claro, trata-se do estado estadunidense. Mas também de um nome em um pôster preso à parede do quarto, lugar de onde chegam relatos - enviados em áudio pelo tio descolado, jornalista musical - e também músicas, estilos, imagens... Para um adolescente em São Paulo nos anos 1980, tratava-se também do "mundo lá fora", com música pop, cinema, t-shirts... A viagem à Califórnia seria uma espécie de realização do sonho de consumo da geração que cresceu alimentada pela indústria cultural.

Retrato de uma época específica, é impossível não prestar atenção à sutil construção de cenários e figurinos de Califórnia, totalmente desprovida de exageros ou clichês. Como se o encontro entre os jovens atores dos anos 2010 e seus personagens de 30 anos atrás acontecesse com a mesma suavidade com que as imagens feitas por Marina Person são montadas com trechos de outros filmes, como Pixote ou Cidade oculta, que mostram, por exemplo, carros cruzando o vale do Anhangabaú, observados a partir do Viaduto do Chá.

Além de uma época (os anos 1980), há um espaço (São Paulo) bem recortado e definido. No colégio, os personagens são arquetípicos: a dupla de amigas (uma mais permissiva, outra mais tímida) e a dupla de pretendentes (um mais sensível e introspectivo, tido como esquisito, e outro bastante popular, de beleza apolínea e com talento para os esportes). Os rituais da adolescência paulistana de classe média estão todos representados: as festinhas, as idas ao litoral (e o luau à beira-mar, com as músicas de Lulu Santos ao violão), o jantar em família.

O espaço privilegiado é o quarto, espécie de templo individual onde discos, livros, fitas cassete e HQs preenchem o tempo de ócio. (Note-se que a televisão não aparece, exceto no espaço mais comum da casa: à época, a TV representava tudo o que era "careta".) É no espaço do quarto que as individualidades são construídas, sempre a partir de modelos importados, de recomendações de amigos e/ou colegas. Quem viveu os anos 1980 deve se lembrar como era importante uma indicação decisiva; afinal, ser "apresentado" a um livro ou a uma banda era como conhecer um novo amigo, alguém que passaria a fazer parte de sua vida e de seu espaço individual de celebração.

Estela (Clara Gallo) planeja encontrar seu tio na Califórnia ao mesmo tempo em que precisa lidar com a possibilidade de perder a virgindade e com o moralismo de seu pai (Paulo Miklos) - que simboliza tanto a herança do regime autoritário dos anos 1970 no Brasil como uma geração desencantada (os yuppies), que renegou os ideias libertários dos anos 1960. Assim, para Estela e seus amigos, as canções de David Bowie são mais que meras canções, mas também a descoberta da sexualidade; as de Robert Smith, o encontro com o desconforto e com certa revolta etc.
O fantasma da AIDS transforma o ato sexual em algo potencialmente letal. A maneira como a doença é apresentada - mais por silêncios e hesitações do que por frases explícitas - é um dos vários pontos fortes do filme de Marina Person. Nas deambulações por lojas de discos ou pelos espaços da cidade, nos trajetos noturnos em busca de um lanche em meio à madrugada, São Paulo parece preencher a identidade dos personagens mais do que eles próprios poderiam ter consciência.

Uma protagonista feminina - em um filme também dirigido e fotografado por mulheres, Marina Person e Flora Dias - é um alento na produção contemporânea. A diretora constrói o "filme de formação" (Bildungsfilm?) dos anos 1980 ao mostrar que o aprendizado acontecia distante das salas de aula e das ruas, mas na intimidade dos quartos. Uma geração talvez mais introspectiva, talvez mais acossada por uma sociedade cada vez mais violenta (que o filme não apresenta).

Califórnia é uma celebração às descobertas da adolescência. Filme que remonta aos discos e livros que nos formaram - e aos que continuarão a nos formar -, repleto de memórias afetivas (especialmente musicais) dos anos 1980 e da cidade de São Paulo.

Quem viveu (esse tempo e esse lugar), verá (o filme) com imenso prazer. (Quem não viveu, também.)

-

No comments:

creative commons

followers

marcadores