. blog de Fabio Camarneiro

assine

arquivos

16 March 2016

the vvitch (2015)


A bruxa constrói sua atmosfera a partir das paisagens da Nova Inglaterra: seus bosques densos e suas árvores em padrões insistentemente verticais, suas cores frias e terrosas, sua bruma e sua umidade. Um movimento de câmera recorrente - uma lenta aproximação do bosque, com a trilha musical aumentando a sensação de mistério e de desconforto - marca o longa de estreia de Robert Eggers. Clichê do cinema de horror, "há algo assustador lá fora", mesmo que não saibamos do que se trata.

Em oposição a esse "lá fora", temos o espaço doméstico de uma família de puritanos ingleses do século XVII: pai, mãe, a filha mais velha (às vésperas da puberdade), o menino mais jovem, um casal de gêmeos. Na cena de abertura, eles partem exilados da segurança da vida em comunidade rumo à natureza inóspita. A oposição entre a segurança do lar e a incerteza do ambiente externo é marcada pela proibição dos filhos de se afastarem das proximidades da casa.

O pai, que tenta ser o centro (material e espiritual) da família, demonstra estar em crise. Sem fazer jus a seus próprios padrões morais, talvez ele só sirva "para cortar lenha", como alguém afirma em uma cena. O filho, que admira incondicionalmente o modelo paterno, começa a questionar seus dogmas. Após o incidente que detona todo o suspense do filme, a mãe entra em um processo de histeria crescente e, mesmo assim, mostra-se como a figura forte do casal. A imaginação de uma ameaça sobrenatural mistura-se à nostalgia da terra abandonada (a Inglaterra), e ambos os sentimentos reúnem-se na imagem de uma maçã vermelha - como aquela da bruxa do desenho animado Branca de Neve e os sete anões. Pouco a pouco, a família começa a desmoronar sobre mentiras e suspeitas mútuas.

Entre todos, a personagem que, desde os primeiros planos, cativa o interesse da câmera (e também do público) é Thomasin, a filha mais velha. Seu momento de vida é particular: seu corpo adolescente começa a deixar para trás os traços de menina e começa a insinuar uma mulher. Os pais imaginam que é hora dela deixá-los para talvez trabalhar na casa de alguma "família de bem"... A menina está prestes a deixar a segurança do lar rumo àquilo de "assustador" que tanto medo e superstição desperta nos personagens.

Talvez esse "lá fora" esteja em toda a parte, mesmo no interior da casa. A divisão entre a segurança do lar e os perigos do exterior vai, pouco a pouco, sendo revelada como falsa. À parte os elementos sobrenaturais (mais insinuados do que efetivamente mostrados, exceto por um breve momento em meio ao bosque e na cena final), A bruxa concentra-se em algo bastante natural: os filhos a superarem seus pais, revertendo assim a situação traumática (o incidente incitante) que coloca toda a narrativa em movimento: a possibilidade dos pais sobreviverem aos filhos.

A ideia do mundo "lá fora" é talvez (simplesmente) a descoberta, pelos jovens, de sua individualidade e de suas sexualidade. Sim, há algo de terrível nas transformações que levam da infância à adolescência e então à idade adulta. (E talvez não seja outro o tema do filme de Eggars.) À medida em que o filme avança, insinuam-se temas caros ao cinema moderno (seja nos EUA dos anos 1950 ou na Europa da década de 1960): o conflito entre gerações, os filhos que resolvem questionar a ordem dos pais, que descobrem que existe muito mais "lá fora" do que lhes foi dito. (Nesse sentido, A bruxa deriva diretamente de A vila, apesar de totalmente distinto: no filme de M. Night Shyamalan, o perigo não passa de uma mentira construída pelos mais velhos; no de Eggers, a ameaça é real e habita o interior de cada personagem. Aqui, a visão de mundo dos mais velhos tem pouca serventia face à complexidade do mundo "lá fora".) Trata-se menos de um embate contra algo sobrenatural e sim da gradual desagregação de um núcleo familiar e de seus padrões morais frente à natureza. Uma cena que sintetiza esses elementos mostra Thomasin questionando a coerência de seu pai, negando-o; pouco depois, ela derrota sua mãe.

De quebra, A bruxa questiona-se toda uma ideia de colonização de território (o tal "destino manifesto", que pautou a conquista do Oeste estadunidense ao entender tal empreitada com uma missão "divina"): o "lá fora" é também toda a América. Família e pátria são derrotadas face a uma sexualidade pagã, feminina e profundamente individualista. Nas imagens de Eggers, as paisagens sobrepõem-se aos personagens, que às vezes aparecem como "detalhes" em enquadramentos que privilegiam o entorno, a casa, as árvores. Em um dos raros momentos subjetivos do filme, surge um corvo a bicar um seio, o que remete ao sonho do pintor da Mona Lisa, relatado por Sigmund Freud em "Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci"... (Não por acaso, um sonho que Freud relaciona com a sexualidade do artista e com a onipresença da lembrança materna - e de sua ausência.) Além disso, os psicanalistas não deixarão escapar que o desaparecimento de Samuel se dá durante uma brincadeira de Fort-Da!

Ao final, o filme lança mão de nudez e magia para tentar dar conta da emancipação sexual de Thomasin - temos uma orgia e, talvez, um primeiro orgasmo metaforizado como levitação. O ciclo se encerra: A bruxa lança mão de um imaginário fantástico para falar de algo muito comum, mesmo banal (apesar de terrível) - a descoberta da própria sexualidade.

Pequena obra-prima, o filme de Eggers é talvez apenas humano, demasiado humano.

Abaixo, o trailer:



-

No comments:

creative commons

followers

marcadores