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07 March 2016

a vizinhança do tigre (2014)


A primeira imagem de A vizinhança do tigre mostra Junim refestelado em um velho sofá, o forro bastante desgastado, as pernas para cima. Ele lê uma carta, cheia de rasuras, escrita com caneta Bic em uma folha de caderno escolar. O destinatário é um amigo presidiário e a carta, com suas frases truncadas e sinceras, fala da esperança em ser libertado e da vida na condicional.

Tudo é visto em um único plano, sem cortes e sem movimentos de câmera, que condensa grande parte do impacto do filme de Affonso Uchoa: Junim – como todo o resto do elenco, moradores da periferia de Contagem, em Minas Gerais – aparece totalmente à vontade em seu cotidiano. Nem exatamente documentário, nem exatamente ficção, o filme parece convidar seus personagens a interpretarem a si próprios.

A espontaneidade aparece com força nas expressões de baixo calão e nas repetidas ofensas que os amigos repetem uns aos outros – “desgraça”, “maldito” –, mas também nos sorrisos que pontuam as brincadeiras: no duelo improvisado de rap ou no combate de espetos para churrasco, que parece remeter a algum antigo filme de capa-e-espada.

Trata-se de um imaginário pautado pela violência. Jogado em uma cama, enquanto empunha um cabide cor-de-rosa como se fosse uma arma, Neguim diz que vai “matar todo mundo”, sair “estourando cabeças”. Também a música é agressiva, seja a letra do rap ou a coreografia bélica da plateia no show de heavy metal. As marcas de bala no corpo são sinal de distinção: as cicatrizes são prova de uma vida “bem vivida” – mais em quantidade que em qualidade.

Mas, apesar de toda a violência latente, a periferia em A vizinhança do tigre é calma, pacata, mesmo tediosa, com seus descampados, suas árvores (onde os meninos colhem mexericas), suas ruínas. Presta-se atenção nos ruídos silenciosos da madrugada, no nascer do sol, no horizonte de casas sem reboco. Como o próprio título revela, A vizinhança do tigre é, talvez antes de mais nada, sobre espaços e, mais especificamente, sobre esse espaço imaginário batizado de “periferia”: um lugar tão distante da população de classe média – que só consegue representá-lo através do noticiário sensacionalista dos telejornais – e, ao mesmo tempo, tão próximo: basta virar uma esquina ou atravessar uma rua.

Os signos de destruição surgem em toda parte. Em uma cena, Menor – ou Mix, sua alcunha de pichador – termina de quebrar o vidro de uma janela. Em outro momento, ele e Neguim atiram pedras nas paredes de uma construção abandonada. Lado a lado com a destruição, Junim vai trabalhar em uma obra de construção – trabalho duro (só aos finais de semana), remunerado com 30 reais por dia. Eventualmente, eles consomem drogas em ambientes escuros, num eco de “No quarto da Vanda”, do português Pedro Costa.

O futuro é incerto: Menor repetiu de ano no colégio. A mãe de Junim coloca sobre o rádio uma caneca plástica com água e faz uma prece. Pede que o filho beba (para “ganhar juízo”, pois “está precisando”). O crime surge como uma memória distante, mas incontornável: há sempre uma dívida, um débito do qual se tenta escapar. (E do qual Junim efetivamente escapa, em uma tocante – ainda que contida – despedida.)

Parte da força do filme reside no registro do momento presente: em Menor pintando a cabeça de Neguim com tinta corretiva (do tipo Liquid Paper) e, depois, assinando “Mix” em sua própria sua pele. Em outra cena, em uma parede, “Mix” aparece grafado lado a lado com “Santinho”, apelido de Eldo – que faleceu durante o longo período de filmagens. Elegia ao amigo morto e celebração à amizade de Mix, Neguim e Junim, A vizinhança do tigre tem o bairro Nacional como seu grande personagem central.

Junto a Adirley Queirós (entre outros), Affonso Uchoa faz um filme que – como a carta do início – não tem medo das rasuras e das incorreções gramaticais. E que coloca a periferia na vanguarda do cinema brasileiro contemporâneo.

(Publicado originalmente sob o título "Tão longe, tão perto" no Caderno Pensar, A Gazeta, Vitória, 5 de março de 2016.)
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