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17 February 2016

trumbo (2015)


Não fosse trágica, a perseguição a membros do Partido Comunista seria um dos episódios mais patéticos da história da indústria de cinema estadunidense. Durante a década de 1950, diretores com simpatias à esquerda do espectro político - como Orson Welles ou Jules Dassin - refugiaram-se na Europa enquanto, nos EUA, armou-se um grande teatro jurídico, liderado pelo senador republicano Joseph McCarthy, que atingiu seu ápice com o episódio dos Dez de Hollywood: um grupo de profissionais que se recusaram a depor frente à comissão do Senado e terminaram presos ou colocados na chamada Lista Negra, o que os impediu de trabalhar. Dessa dezena de homens, alguns – como o diretor Edward Dmytryck – acabaram se rendendo e depuseram frente à Comissão de Atividades Anti-Americanas para conseguir voltar ao trabalho. Outros, como o roteirista Dalton Trumbo, nunca aceitaram fazê-lo.

A cinebiografia do diretor Jay Roach cria o retrato de um personagem impossível de não ser admirado: sagaz, inteligente, espirituoso, rápido nas respostas, de uma lógica mordaz, generoso com os amigos, carinhoso (quase sempre) com a família, inabalável em seus valores políticos. Além disso, trabalhador infatigável e talentoso que, durante os anos em que permaneceu proscrito pela indústria cinematográfica, venceu dois Oscars: o de roteiro por Roman Holiday (A princesa e o plebeu, William Wyler, 1953), creditado a Ian McLellan Hunter; e o de argumento original por Arenas sangrentas (The Brave One, Irving Rapper, 1956), assinado sob pseudônimo.

Essencial para a construção do personagem são os aparentemente inesgotáveis recursos de Bryan Cranston, que é capaz de criar um gestual caricato - como quando salta para fora de um carro com uma garrafa de espumante em cada uma das mãos - ou demonstrar um autocontrole estoico (ao receber o conteúdo de uma taça de bebida no rosto). De sério-dramático ao discutir política ao frasista irônico no embate com John Wayne; do workaholic à beira de um ataque de nervos ao pai de família às voltas com a filha adolescente: o Trumbo de Cranston é um pouco tudo isso. Valesse o Oscar alguma coisa - e, segundo o filme de Jay Roach, ele vale - não seria desmerecido se o ator levasse a estatueta no próximo dia 28 de fevereiro.

Mas, além de Cranston, há pouco a se destacar em Trumbo, bastante convencional em seu enredo (o personagem que vai do céu ao inferno e, então, à redenção final), em seus estereótipos (a esposa compreensiva, o amigo de saúde frágil) e na "discursiva" cena final, com Trumbo verbalizando o "perdão" àqueles que prestaram depoimento durante o macartismo. No caso, a mensagem é endereçada ao grande ator Edward G. Robinson - que, apesar de ter realmente deposto, jamais revelou nomes à comissão do Senado como mostrado. (Não é o caso de exigir, de uma obra de ficção, que seja totalmente coerente com a História. Porém, nesse caso, a inconsistência parece ultrapassar os limites toleráveis.)

Em Trumbo, à primeira vista, a questão central é a perseguição aos comunistas. Mas um olhar mais atento perceberá como a visão política do personagem é apresentada de maneira superficial (o decalque de algo que lembra um piquete em frente a uma fábrica) ou infantil (o pai que explica à filha que “dividir o lanche” definiria algo próximo ao comunismo). Na verdade, o problema são - como sempre - os valores que formaram os Estados Unidos da América: o trabalho, o talento individual etc.

A partir de seu olhar contemporâneo (e contemporizador), o filme não se questiona sobre “como os EUA puderam perseguir comunistas”, mas sobre “como os EUA puderam perseguir profissionais competentes talentosos e, chegando a os impedir de trabalhar, apenas por conta de suas ideologias – sejam quais forem essas ideologias”. Repete-se o mito da imigração: todos são bem-vindos, desde que dispostos a trabalhar. Todos podem ser americanos, especialmente se demonstrarem expertise em alguma área de atuação. (E não foi de outra maneira que o cinema se formou naquele país, mas a partir de judeus do Leste Europeu que resolveram fundar estúdios, de diretores e técnicos oriundos de todas as partes do mundo.)

O discurso final resume o tom conciliador, que não parece dar conta do complexo pensamento de seu personagem central, diretor do filme anti-guerra mais radical do cinema americano, Johnny vai à guerra (Johnny Got His Gun, 1971), que opõe a descoberta da adolescência e os anseios de um jovem (filmados em cor) e seu corpo dilacerado pela guerra, na cama de um hospital (em um contrastado preto e branco).

O socialismo, como diz o título de um livro de John Nichols, é uma "tradição americana". O retrato das esquerdas ainda carece de um grande filme. Ou talvez, por sua própria estrutura (calcada em trajetórias individuais), seja impossível ao cinema narrativo clássico dar conta desse assunto. Uma nova forma precisaria ser forjada para dar conta do pensamento de uma nova sociedade. Trumbo termina como uma potente homenagem ao homem que enfrentou a perseguição macartista, sobrevivendo a ela. É pouco frente ao tamanho dos ideais que motivaram Dalton Trumbo.

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