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24 July 2015

campo de jogo (2014)


Eram os anos 1990. A cineasta Paula Gaitán morava em Bogotá com os filhos quando ouviu do mais velho que ele queria se tornar jogador de futebol. Ficou contrariada: preferia mil vezes um intelectual, um artista! A insistência do menino foi tanta que, um dia, levou-a a arremessar um de seus sapatos na direção do filho. Por sorte, errou o alvo.

Eryk Rocha, ao invés de jogar bola, terminou cineasta como seus pais. Campo de jogo é o reencontro com sua primeira grande paixão.

O filme começa com um homem a jogar cal nas linhas quase apagadas de um campo de terra. A grama, escassa, aparece aqui e ali... Ele começa pelo círculo central. Depois, marca a linha que divide o meio de campo. O tempo é lento, quase cerimonioso. Logo, está pronto o cenário para o espetáculo.

Um campo precário, de terra batida. Um campeonato quase amador (ou quase profissional?) na periferia do Rio de Janeiro. Não muito distante do Maracanã, como avisa um letreiro. Muito distante do Maracanã, como percebemos pelas imagens: ao invés das arquibancadas monumentais, a torcida aqui está espremida na beira do campo - e, às vezes, dentro dele. Ao invés do glamour, uma espécie de energia atávica, que Eryk Rocha gosta de associar a um ritual pagão.

Campo de jogo imagina o futebol como uma espécie de teatro, dramaturgia de um povo. No futebol amador, as linhas de cal - que delineiam o limite entre cena e vida - torna-se tênue. Não mais o Olimpo estrelado do futebol globalizado, mas corpos e olhares que permanecem magnetizados ao que verdadeiramente interessa: a bola.

A câmera de Rocha é tão atenta à redonda como um torcedor: o foco de atenção se concentra em seu movimento. Usando lentes teleobjetivas, os operadores de câmera precisam incorporar, mimetizando o tema do filme, algo de atlético. Entram em campo. Acompanham as jogadas. Veem-se corpos que caem, sujos de terra, areia. Os uniformes, antes brancos, começam a ficar marrons. Gritos do treinador e do público criam uma algaravia de onde às vezes nota-se algum sentido. Um desenho de som que privilegia a experiência de se ver o futebol em campo, vozes e ruídos que se sobrepõem. Uma multiplicidade de estímulos à visão e ao ouvido.

Campo de jogo nunca é desnecessariamente veloz. Contraria a lógica espetacular da transmissão televisiva e desconstrói identidades (o jogo final entre Juventude e Geração dá espaço para imagens de outras partidas), não se preocupa com certa "objetividade". ("O videotape é burro", já disse Nelson Rodrigues.) Aqui, trata-se da experiência de se jogar futebol e de se assistir a um jogo de futebol.

Trata-se também de acompanhar os bastidores. Ver a preleção do técnico, o momento de rezar antes de entrar em campo. A ira contra a arbitragem. O momento de delírio que é o futebol, festa coletiva organizada ao redor de ícones de poder - como nos rituais xamânicos.

Em certos momentos, como que para ressaltar o elemento épico, Campo de jogo utiliza a câmera lenta e a música erudita, a ópera. O corpo de um garoto negro, recoberto de areia, é uma espécie de rondó no filme de Rocha. Vemos detalhes: o peito, os lábios. Há aqui uma erotização do espetáculo futebolístico, muito distante da valorização dos dotes físicos dos atletas. O jogo é tratado como metáfora de um país, em si, sensual. Um país que joga bola, como bem colocou Pasolini, "em verso", futebol-poesia. Ou, no caso, futebol-cinema-de-poesia.

O corpo misturado à terra - uma ideia de país que entra em campo. Juca Kfouri gosta de repetir uma frase que ele atribui ao sociólogo Gabriel Cohn: "não respeito sociólogo no Brasil que não tenha os fundilhos das calças puídos pelas arquibancadas". Campo de jogo é obra de um cineasta que mostra os fundilhos das calças puídos nos grandes estádios e nos mais modestos cenários das periferias e interiores do país.

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