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22 April 2015

últimas conversas (2015)


O derradeiro filme de Eduardo Coutinho. Confesso uma intensa emoção durante os créditos finais, enquanto ouvia a voz em off de Coutinho repetindo, embevecido, uma frase da entrevista que encerra Últimas conversas: "Deus é um homem que morreu".

A dor pelo termo dessa filmografia tão rica marca também a necessidade de se rever seus filmes, de se repensar sua (imensa) importância para o cinema brasileiro.

Últimas conversas foi montado por Jordana Berg e finalizado por João Moreira Salles - cujo suporte foi fundamental para que Coutinho produzisse seus filmes durante as últimas décadas. A intenção original do projeto era entrevistar adolescentes matriculados no terceiro ano do ensino médio no Rio de Janeiro, mas o depoimento que abre o filme é do próprio realizador, revelando sua crise com o material.

Nesse início e durante todo filme, montadora e finalizador deixaram transparecer mais de Coutinho do que ele próprio talvez desejasse. Por outro lado, a presença do realizador, morto em fevereiro de 2014, surge como uma homenagem. Últimas conversas é sobre os adolescentes retratados, suas angústias, o passado familiar, os sonhos, suas visões de mundo. Mas é também sobre o homem Eduardo Coutinho, seu mal-humor calculado, seus cigarros, sua autocrítica sempre implacável, que transparece em conversas em off com o diretor de fotografia Jacques Cheuiche.

Últimas conversas é um filme sobre a crise de um cineasta que não sabe bem como lidar com seu material. Uma crise que, talvez, tenha começado antes, desde Jogo de cena, obra-prima inquestionável que resume o propósito da década final do realizador: explorar como os relatos orais, mesmo aqueles "verdadeiros", são perpassados pelos desejos dos que falam. Como a memória é um espaço de ficção ou, antes, como ficção e verdade são muitas vezes indissociáveis.

Seus trabalhos posteriores a Jogo de cena lidaram com os limites entre o relato (o palco) e a experiência (a vida) - Moscou -, os discuros da TV aberta, amplificados pela tela do cinema - Um dia na vida - e a lírica das memórias individuais - As canções. Em Últimas conversas, Coutinho parece querer retornar ao retrato mais antropológico que realizou em Edifício Master, mas as dúvidas constantes parecem demonstrar que, para o realizador, o projeto já havia nascido ultrapassado.

É talvez um filme menor de Coutinho, uma homenagem póstuma, mas com momentos sublimes. A sociologia está lá, com as opiniões sobre racismo, futuro profissional, o retrato enviesado de famílias pouco estruturadas (mães solteiras, pais ausentes), a família homoafetiva vista por um viés positivo. Há os dramas pessoais, a necessidade de expressão pelos poemas e canções, a busca por uma identidade ainda em construção, o trauma de infância. Mas é na surpreendente entrevista final que o filme se revela: Coutinho, bastante consciente de que um momento maravilhoso se dá diante da câmera, entrevista uma menina de 6 anos de idade.

Nesta conversa, Coutinho parece revelar, de forma sub-reptícia, suas intenções: a subversão de uma visão de mundo tradicional, coisa que a criança faz naturalmente. Coutinho parte do cotidiano para chegar ao transcendente. Do cotidiano da van escolar para a existência de Deus.

Coutinho marca o tempo todo sua distância dos entrevistados. Ele se apresenta como um velho frente aos jovens que usam, sem dificuldade, os celulares que tanto estranhamento provocam no diretor. Como se ele marcasse a proximidade de sua morte frente à vida que os outros tem pela frente. Como se viver fosse um aprendizado mas, ainda mais importante, um desaprendizado, em busca dessa visão descompromissada que apenas as crianças conseguem ter em relação ao mundo.

Coutinho, obrigado por nos (des)ensinar tudo!

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