Branco sai, preto fica tem, como ponto de partida, um trauma: a invasão pela polícia de um baile black na Ceilândia, periferia de Brasília. A violência dessa noite permanece nos corpos de suas vítimas: Shokito teve a perna amputada; Marquim é cadeirante. Mas aqui o trauma surge recoberto pela fábula. Em tom de ficção científica (com inventividade e certo espírito lúdico no lugar de efeitos visuais), surge do futuro um cobrador das dívidas da periferia e da população negra: é Dimas Cravalanças (Dilmar Durães), enviado com a missão de recolher provas que possam incriminar o Estado brasileiro pelos atos de violência contra populações negras e periféricas.
A “máquina do tempo” de Cravalanças é um contêiner que balança de um lado para o outro sem que, contudo, pareça sair do lugar. As viagens do personagem se dão no tempo – rumo à memória traumática – e não no espaço que, aliás, é um problema para os personagens de Branco sai, preto fica. A paisagem da Ceilândia é também uma espécie de cárcere, com seus descampados, ruas de terra e fachadas irregulares.
A locomoção por esses espaços labirínticos torna-se central: uma cena mostra, em três planos consecutivos, a demorada rotina de Marquim para sair de seu carro, montar sua cadeira de rodas, fechar o carro, ativar o elevador com o qual entra em casa... Também Shokito é visto, de maneira recorrente, subindo e descendo escadas. Carros em movimento ou os trilhos do metrô servem como imagens de transição entre cenas. Desde seu filme anterior – A cidade é uma só – Adirley Queirós entende que a opressão social está estruturada a partir dos espaços (e vice-versa). O ritmo muitas vezes lento é metáfora dessa prisão: seja na cadência do elevador que Marquim usa para entrar em casa, seja na paisagem de viadutos que cerca a casa de Shokito, enquanto ele desenha ou ajusta sua perna mecânica.
Isolados e imóveis, os personagens se cercam de traquitanas tecnológicas: aparelhos de aparência ultrapassada, gambiarras. Shokito dribla uma limitação da perna mecânica de um amigo. Marquim transmite – em algo que lembra uma rádio pirata – a música black da boate Quarentão. De sua cadeira de rodas, ele recria um diálogo na noite do trauma entre ele mesmo – acuado – e um policial autoritário. Um recurso épico – em que um mesmo ator contracena consigo mesmo em dois papeis distintos – que lembra a clássica cena em que Othon Bastos narra a morte de Lampião em Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha. Recurso que mostra que o trauma precisa ser abordado de maneira “indireta”, a “narração” ao invés da “encenação”.
A violência em Branco sai, preto fica é subterrânea: a organização opressiva dos espaços, a perseguição às manifestações culturais da periferia. Ganha corpo, pouco a pouco, um desejo de reconhecimento e ressarcimento – representado no personagem de Cravalanças. Em determinado momento, empunha um revólver imaginário e atira. Num êxtase, esbraveja contra o progresso, as prestações bancárias, a violência policial, os achaques diários... No corte do plano, aponta a arma em direção ao espectador na sala de cinema e atira.
Esses personagens negros, de baixo poder aquisitivo, maltratados por todas as instituições (polícia, hospitais, Estado), tornam-se protagonistas de suas próprias memórias. Seu plano: lançar uma “bomba” em Brasília – que explodirá na forma de músicas, do forró da “dança do jumento” ao rap e ao funk. Um plano ao mesmo tempo “terrorista” e “lúdico”: explodir os símbolos do poder opressor (em um desenho de Shokito, vemos a Praça dos Três Poderes destruída) e depositar, no coração desse mesmo poder, as manifestações culturais desprezadas pelo establishment intelectual. A tecnologia aqui não surge como fetiche, mas como ferramenta de revolta, como uma maneira de resignificar o trauma.
É o próprio filme de Adirley Queirós essa “bomba” que coloca em nova perspectiva a representação da periferia no cinema brasileiro (em outras palavras: o tempo de Cidade de Deus e similares terminou). Branco sai, preto fica é uma obra fragmentada como seus personagens dilacerados; um filme em que o mesmo trauma que marca os corpos dos personagens legitima a fábula da revolta de todos aqueles que sofreram e sofrem os desmandos e as violências do capital. Uma explosão – bela representação do real lacaniano – após a qual nada mais será como antes.
(Publicado originalmente sob o título "Cidade amputada" no Caderno Pensar, A Gazeta, Vitória, 28 de março de 2015.)
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