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07 March 2015

"it's alive!"

— grita o Dr. Frankenstein ao ver sua criatura ganhar vida! A cena está em Frankenstein, dirigido por James Whale e lançado pela Universal em 1931.


O sucesso do personagem interpretado por Boris Karloff fez com que a Criatura (que no livro não tem nome) passasse a ser conhecida pelo nome de seu criador, e a imagem de Frankenstein se cristalizou com raras falas (no romance, ele é mais articulado), a testa alta, um eletrodo de cada lado do pescoço, a expressão entre letárgica e ameaçadora, além das sombras em seu rosto, produzidas por uma iluminação colocada abaixo do rosto do ator, apontando para cima.

Desde então, a indústria cultural já mostrou Frankenstein em comédias ou fitas pornô, em cerca de uma centena de filmes. Um dos mais recentes é o longa-metragem em que Aaron Eckhardt interpreta a criatura, baseado na graphic novel de Kevin Grevioux.

OS MONSTROS — No início dos anos 1930, os filmes B de terror ajudaram a consolidar a Universal Pictures, estúdio que na década anterior havia conhecido seus maiores sucessos com o ator Lon Chaney: O corcunda de Notre Dame (1923) e O fantasma da ópera (1925). Filho de pais surdos-mudos, Chaney tornou-se um dos mais expressivos atores de seu tempo, sendo conhecido como “o homem de mil faces”, além de expert em maquiagem - sua aparência podia mudar completamente de um filme para outro.

O sucesso de Chaney levou o produtor Carl Laemmle Jr. a apostar na fórmula de “filmes soturnos com personagens monstruosos”. Seu próximo passo seria Drácula, o livro de Bram Stocker que já havia servido de inspiração (não creditada) para o alemão Nosferatu (1922). Como o diretor F. W. Murnau não havia feito nenhum tipo de acordo com a família de Stocker e temia um processo, não existe no filme nenhum nome do romance original. De qualquer maneira a trama principal está lá, inconfundível.

O chefão da Universal foi inicialmente reticente ao projeto de Laemmle Jr., mas Carl Laemmle (o pai) acabou cedendo e autorizou a produção de Drácula, com Chaney interpretando o vampiro. Mas ninguém contava com a morte do ator, ainda antes do início das filmagens, aos 47 anos, vítima de um câncer no pulmão. O diretor Tod Browning, incumbido de procurar um substituto para “o homem de mil faces”, tentou Conrad Veidt e outros atores antes de se decidir por um ator húngaro, com forte sotaque e que, apesar de ainda praticamente desconhecido nos EUA, tinha um currículo de quase 40 filmes em sua terra natal. Seu nome era Bela Lugosi.

Drácula fez de Lugosi um astro, mas o personagem foi também sua prisão, pelo resto da vida. Até sua morte, o ator não conseguiu estabelecer uma carreira para além da imagem do Príncipe das Trevas. Lugosi interpretou Drácula em vários momentos, e mesmo em uma série de filmes cômicos - alguns deles, constrangedores. Os últimos dias de sua vida foram retratados em tom de elegia em Ed Wood, de Tim Burton (Martin Landau ganhou um Oscar por sua interpretação de Lugosi). Viciado em morfina e metadona, sem muito dinheiro, arrecadando modestos dividendos da fama de seu maior sucesso, Lugosi morreu em 1956, antes de concluir sua participação em Plan 9 From Outer Space, do “pior cineasta de todos os tempos”, Ed Wood, lançado três anos depois.

Lugosi desceu à sepultura vestindo o figurino de seu personagem mais famoso.


Além da performance - hoje icônica - de seu ator principal, o Drácula de Tod Browning estabeleceu as bases do terror cinematográfico a partir da fotografia de alto contraste de matriz expressionista de Karl Freund, da iconografia decadentista, e da figura do monstro lascivo - elementos desde então recorrentes na história do cinema.

Após Drácula estourar nas bilheterias, Laemmle Jr. começou a preparar seu próximo filme. Para o papel principal, ele queria o novo astro do estúdio. Mas os testes de Lugosi como a Criatura não agradaram ao produtor, que acabou se decidindo por um ator inglês de 44 anos, até então conhecido apenas por alguns papéis secundários. Nas mãos do diretor James Whale e do especialista em maquiagem Jack Pierce, Boris Karloff se transformaria em um dos maiores ícones do cinema, outra estrela no monstruoso firmamento da Universal.

MARY SHELLEY — A “Criatura” encarnada por Karloff surgira quase um século antes, pela pena de uma jovem inglesa, Mary Wollstonecraft Godwin, que - atitude fora dos padrões da época - abandonou a casa paterna para viver com o poeta romântico Percy Bysshe Shelley. Durante o verão de 1816, o casal Shelley, o poeta Lord Byron e um médico amigo do casal, John Polidori, estavam hospedados às margens do Lago Genebra quando - reza a lenda - resolveram criar uma espécie de concurso para driblar o tédio: quem conseguiria escrever a história mais horripilante?

A posteridade conta que, naquela mesma noite, acordada por um pesadelo em que se misturavam eletricidade e ressuscitação de cadáveres, Mary Shelley percebeu que tinha encontrado uma história capaz de vencer o desafio. Dois anos mais tarde, em 1818, Frankenstein, ou: O Prometeu Moderno apareceu em primeira edição, em três volumes. Mary Shelley contava 20 anos de idade.

Logo, o personagem caiu no gosto popular. Em 1823, os londrinos já podiam assistir a uma peça, de autoria de Richard Brinsley Peake, baseada nos personagens de Frankenstein. A própria Mary Shelley, depois de  ter assistido a essa adaptação, teria feito algumas modificações no livro, como, por exemplo, introduzir o termo “galvanização” nas descrições das experiências de Victor Frankenstein. O filme de James Whale para a Universal tem mais elementos da peça de Peake do que do livro original: o Doutor Frankenstein não se chama de Victor, mas Henry; o monstro deixa de ser um “bom selvagem”, inteligente e articulado, para se tornar um problema para a população local.

Em Da natureza dos monstros (São Paulo: Arte & Ciência, 1998), Luiz Nazário aponta ainda outras diferenças entre o livro e o filme, e aponta para um traço reacionário na obra de Whale: enquanto, no livro, a sociedade é uma ameaça para o indivíduo “diferente”, no filme acontece justamente o contrário: é o “diferente” que ameaça a ordem da sociedade e, portanto, deve ser destruído.

Tudo é ainda um pouco mais estranho, lembra Nazário, se lembrarmos que James Whale era homossexual e chegou a ser vítima de preconceito dentro da própria indústria de cinema, como retratado em Deuses e monstros (1998), cinebiografia dos últimos dias de vida de Whale, com Ian McKellen no papel do diretor de Frankenstein.

Reacionário ou não, é o gênio de Whale uma das razões para a longevidade de Frankenstein. O diretor lançou mão de recursos do expressionismo alemão dos anos 1920 - cenários grandiloquentes que, em certa medida, lembram os de Metrópolis (1927), de Fritz Lang. A imagem do monstro, manifestação do que há de horrendo (ou sublime) na natureza humana, faz par com os personagens centrais de Nosferatu ou O golem (1915), muito distintos daqueles do livro de Mary Shelley, que só seria adaptado de maneira mais “fiel” em 1994, por Kenneth Brannagh (que também interpretava o doutor) e com Robert De Niro no papel da Criatura.

James Whale recusou todos os convites para dirigir uma continuação de Frankenstein até que, quatro anos após o primeiro filme, Laemmle Jr. o fez mudar de ideia. Em A noiva de Frankenstein, Elsa Lanchester interpretava dois papéis: a personagem-título e a própria Mary Shelley, que aparece no prólogo criado para explicar como o monstro sobrevivera ao incêndio do final do filme de 1931.

No lançamento de A noiva de Frankenstein, a Universal já era um estúdio de sucesso: um ano após Drácula e Frankenstein, Karloff fez o papel principal em A múmia, dirigido por Karl Freund (diretor de fotografia de Drácula) e também inspirado pela estética do expressionismo alemão. Antes de emigrar para os EUA, Freund tinha trabalhado em Metrópolis e Berlim: sinfonia de uma metrópole (1927), de Walter Ruttmann. Após a ascensão do nazismo, ele deixou a Alemanha e acabou sendo contratado no estúdio de Laemmle (outro descendente de alemães). Resultado: Freund, como diretor de fotografia de Drácula, acabou ajudando a definir o estilo de luz dura, altos contrastes e grandes áreas de sombra dos filmes de horror da Universal – uma das marcas registradas do estúdio durante os anos 1930 – e que, nos anos seguintes, seria a marca registrada de grande parte do cinema noir.

A outra marca registrada do estúdio era seu elenco. Bela Lugosi, após ter perdido o papel do Monstro em Frankenstein, ainda teria bons desempenhos em outros filmes do estúdio – mas em papéis menores. Ele acabaria contracenaria com seu “rival” Boris Karloff em O filho de Frankesntein, terceiro filme da série, desta vez sem James Whale por trás das câmeras. Lugosi interpretava Ygor, o ajudante corcunda do doutor, que aparece nesse filme pela primeira vez.

BELA LUGOSI IS DEAD – Apesar do ciclo de monstros da Universal ter entrado em declínio logo no final dos anos 30, o estúdio não parou de lançar filmes com seus mais famosos personagens. Após outro papel secundário em O lobisomem (estrelado por Lon Chaney Jr., o filho do “homem de mil faces”), Lugosi mais uma vez encarnou Ygor em O fantasma de Frankenstein (1942). Mais tarde, faria uma participação em Ninotchka, de Ernst Lubitsch, com Greta Garbo no papel principal, e apareceria em Frankenstein encontra o Lobisomem (nota-se, mesmo pelos títulos, que a Universal começava a aceitar qualquer tipo de história para manter seus lucrativos monstros nas telas).

Finalmente, 17 anos depois de ter sido recusado para o papel, Lugosi viria a interpretar o monstro criado por Mary Shelley em Abbott and Costello Meet Frankenstein (1948), uma comédia estrelada pela famosa dupla cômica. O ator estava em uma espiral descendente, transformando-se, pouco a pouco, em uma paródia de si mesmo. Um único título diz tudo: Bela Lugosi Meets a Brooklyn Gorilla (1952).


A MALDIÇÃO DE FRANKENSTEIN – O outro grande monstro dos anos 1930, Boris Karloff, teve melhor sorte. Após O filho de Frankenstein, ele abandonou definitivamente o papel que o consagrara e, na década seguinte, trabalharia com o produtor Val Lewton, geralmente interpretando assassinos. Lewton revigorou a Universal ao perceber que, se o estúdio quisesse sobreviver, a era dos monstros teria de ser superada. Ele começou a produzir uma série de filmes mais psicológicos e menos explícitos (o que também significava menores custos de produção), sendo Sangue de pantera (1942), de Jacques Tourneur, um dos mais memoráveis. Apesar disso, os monstros ainda seguiam dando bilheteria, em filmes de qualidade cada vez mais duvidosa.

O próprio Karloff reencontraria o personagem de Frankenstein em House of Frankenstein (1944), mas, desta vez, ao invés da Criatura, ele interpretou o Doutor. Nos anos 1950, Karloff alternaria seu trabalho nas telas com alguns papéis na Broadway e, na década seguinte, faria uma espécie de atualização da figura do horror através do produtor Roger Corman e do diretor Peter Bogdanovich, em Targets (1968).

Karloff trabalhou até morrer, em 1969, aos 81 anos. E, diferentemente de Lugosi, foi enterrado em roupas civis.

LEGADO – Quando uma produtora inglesa anunciou que pretendia fazer mais uma adaptação da novela de Mary Shelley, a Universal ameaçou: se a Hammer usasse qualquer elemento minimamente parecido com o filme  de 1931 que não constasse também do livro, ela seria processada.

O processo nunca aconteceu e, em 1957, A maldição de Frankenstein transformou Peter Cushing, no papel do cientista, na nova estrela do cinema de terror. No filme de Terence Fisher, a Criatura ficou a cargo de Christopher Lee, que, no ano seguinte, dirigido pelo mesmo Fisher e contracenando com o mesmo Cushing, interpretaria Drácula. Até hoje, como Bela Lugosi antes dele, Lee parece indissociável da imagem do Príncipe das Trevas.

Porém, diferentemente de Lugosi, Cushing e Lee não ficaram presos a esses papéis, e foram apresentados às novas gerações pelas mãos de George Lucas. No primeiro filme da série Star Wars (1977), o diretor ofereceu a Peter Cushing o papel do Comandante Tarkin, braço-direito de Darth Vader. No filme, Tarkin explode junto com a Estrela da Morte. Fora das telas, Cushing morreu em 1994, de câncer na próstata. Já no primeiro filme da segunda trilogia Jedi, de 1999, que narra como Anakin Skywalker entrou para o lado negro da Força, Christopher Lee (92 anos de idade e mais de 200 filmes no currículo) interpreta o Conde Dooku.


Frankenstein é também personagem em dezenas de outros filmes, incluindo uma produção japonesa em que ele banca o Godzilla, uma adaptação produzida por Andy Warhol e dirigida por Paul Morrissey, e até filmes pornôs. Mas uma das melhores “livres adaptações” do personagem é O jovem Frankenstein (1974), uma sátira do diretor Mel Brooks aos filmes clássicos da Universal, curiosamente filmado nos mesmíssimos cenários utilizados nos filmes dos anos 1930, encontrados quase intactos em algum porão do estúdio. Gene Wilder faz o neto do Doutor Frankenstein, Peter Boyle é a Criatura e Marty Feldman é o corcunda Ygor. (Pronuncia-se “Áigor...”)

Apesar da sátira, O jovem Frankenstein presta justa homenagem ao objeto de sua paródia: os filmes de monstro que insistem em retornar “do mundo dos mortos” e assombrar o imaginário popular ligado ao cinema.
Nota: uma versão anterior deste texto foi publicado na revista online B*Scene. Após a extinção do site, ele havia desaparecido da Internet. Agora, encontra-se novamente acessível. (Pela edição original, agradecemos a Alex Antunes, Bárbara Lopes e Katia Abreu.)
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