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25 February 2015

ida (2014)


Ida é marcado por um extremo rigor na composição de seus enquadramentos (numa janela mais "quadrada" que a 1,33:1). Ao invés de enquadrar os personagens, os planos parecem construídos a partir dos ambientes do filme: quartos e salas de apartamentos com pé direito alto; o interior de um automóvel; corredores e escadarias de hotéis; uma floresta. Dentro desses cenários, os corpos humanos surgem um tanto deslocados, recortados de maneira inusitada, muitas vezes "desequilibrados" no quadro. Dessa tensão visual, que dura quase toda a projeção (atenuada apenas nas sequências finais), surge um dos interesses pelo filme.

Há algo de fascinante também no ritmo do longa de Paweł Pawlikowski. Por um lado, a narrativa parece veloz (muitos eventos cabem neste filme de pouco mais de 80 minutos); ao mesmo tempo, cada plano possui, em seu interior, um andamento lento, próprio a certo clichê do "cinema europeu de arte". Em Ida, o tempo esgarçado tenta trazer à tona as marcas da História (com "H" maiúsculo), vestígios que, literalmente "enterrados" no passado da protagonista, serão um dos motes principais da busca das duas personagens centrais.

Wanda é determinada e às vezes um pouco grosseira. Fuma, bebe, fala de maneira direta: ao seu redor parece orbitar todos os personagens do filme, são suas ações (e suas obsessões) que movem a narrativa. Ela foi combatente ao lado dos comunistas, e a visão trágica de seu personagem talvez revele menos sobre a História em si e muito mais sobre uma leitura contemporânea da experiência comunista na chamada Cortina de Ferro.

A outra personagem central é a que dá nome ao filme. Ida está prestes a se tornar freira, e a narrativa preenche o hiato entre sua saída e um suposto retorno ao convento. Ela será levada por Wanda, que é sua tia, a descobrir segredos de seu passado e, enfim, uma sensualidade inaudita. Em uma cena, Ida retira seu hábito e, pela primeira vez no filme, revela seus cabelos (que a fotografia em preto e branco deixa imaginar serem ruivos), soltando os grampos que os prendiam e desenrolando sem pressa as madeixas... O cabelo de Ida, como seu próprio passado, é algo ao mesmo tempo aparente e oculto: esteve sempre lá, mas era como se não estivesse. A cena toda é singela e, ao mesmo tempo, extremamente sensual. A personagem olha em direção à câmera, não sabemos se buscando o olhar da tia ou do personagem de um jovem saxofonista. Não há dúvida, porém, de que, nesse momento, Ida encara o público.

O movimento em direção ao passado é estrutural à narrativa do filme: realizado em 2013, Ida situa seus personagens em 1962 e alude a eventos ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial. O longa de Pawlikowski trata do luto e da memória - impossível de ser apagada - dos que morreram na guerra. Porém, mesmo que realize seu objetivo - descobrir a sepultura dos parentes mortos e trasladar seus corpos para um cemitério judaico -, Wanda jamais encontrará conforto, sempre aprisionada na memória da dor, na lembrança da guerra.

O próprio filme, seja por seu estilo, seja por sua trama central, também parece preso ao passado. Como se Pawlikowski fosse um diretor esquecido dos anos 1960, cujo filme agora houvesse sido descoberto. (Com a ressalva de que dificilmente Ida seria realizado em meio ao regime comunista sem criar problemas com a censura.)

Ida tem gosto de filme antigo ou, se se preferir, "anacrônico". Ao receber o Oscar de melhor filme estrangeiro, não deixa de se enquadrar numa onda recente da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas por obras "nostálgicas", das quais O artista (que lembra algo realizado no início dos anos 1920) talvez seja o melhor exemplo. (Lembremos que, segundo Fredric Jameson - "Pós-modernidade e sociedade de consumo". tradução Vinicius Dantas. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, nº 12, p. 16-26, jun. 1985 -, o "filme de nostalgia" seria típico da pós-modernidade.)

Ida - filme e personagem - escapam do passado na descoberta do corpo, que começa justamente na cena dos cabelos sendo desenrolados. A personagem, nas sequências finais, parece tentar experimentar, nem que por um instante, a vida da tia. Parece tentar - metaforica, mas também literalmente - "andar com os sapatos" da outra e, de quebra, fumar, fazer sexo, olhar o mundo pela mesma janela trágica do apartamento de Wanda. Depois, uma encruzilhada, uma escolha, e a caminhada determinada pela calçada.

Seria o retorno ao claustro? Ou apenas, depois da descoberta de seu passado judeu, a busca pela própria identidade? Assim como os corpos dos familiares de Wanda precisaram de uma cova "temporária" antes de encontrarem seu jazigo definitivo, talvez a própria vida de Ida houvesse sido "temporária" até seu encontro com Wanda. Mas então qual seria seu lugar?

O filme não traz a resposta. Seu último plano traz um dos topos mais típicos da nouvelle vague: a deambulação pela cidade. É o caminho aberto, a proposta de embate com as energias às vezes surpreendentes que habitam as ruas.

Em tempo, Eduardo Escorel escreveu um belo texto sobre o filme na revista Piauí.

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