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28 February 2016

se deus vier que venha armado (2015)

Se deus vier que venha armado | Divulgação

A importância de Notícias de uma guerra particular (João Moreira Salles; Kátia Lund, 1999) para o cinema brasileiro das últimas décadas parece cada vez mais se confirmar. Seu retrato da periferia carioca e da criminalidade, ao tentar se equilibrar entre os pontos de vista da polícia, do crime e dos moradores, tem servido de modelo seja para Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002) ou Uma onda no ar (Helvécio Ratton, 2002), seja para Tropa de elite (José Padilha, 2007) ou Alemão (José Eduardo Belmonte, 2014), entre tantos outros.

Se deus vier que venha armado retrata a periferia da zona sul de São Paulo. No prólogo, o filme de Luis Dantas parece flertar com um olhar romantizado: a câmera lenta, a lente teleobjetiva, o figurino que remete a décadas passadas, a trilha sonora grandiloquente, tudo ao redor da personagem feminina, símbolo da perda e do trauma - e que depois, na personagem de Sara Antunes, representará a possibilidade de redenção...

Porém, logo após essa abertura (assinada por outro diretor de fotografia: Jacob Solitrenick ao invés de Hélcio Alemão Nagamine), uma estética mais realista começa a se impor. Durante a apresentação dos personagens, a montagem oscila entre o presidiário em saída temporária e o trabalhador da oficina mecânica, entre a atriz e o jovem policial... O excesso de idas e vindas pretende certo dinamismo, mas acaba por confundir a narrativa. Demora-se a perceber quais os problemas de cada um dos personagens, bem como a relação entre eles. Mas o ritmo parece diminuir quando dois irmãos conversam na laje de uma casa na periferia (e o horizonte noturno revela a arquitetura fragmentada do bairro de classe baixa). Um deles, presidiário em uma saída temporária da prisão; o outro, trabalhador em uma oficina mecânica. O abismo entre ambos é imenso, e o diálogo um tanto artificial pode refletir essa distância, essa falta de intimidade. Quando brincam, simulando uma luta corporal, surge a metáfora de uma proximidade agressiva, revelando que é a violência que liga esses homens, cujas identidades, em certo momento, serão confundidas.

Se Deus vier que venha armado cresce quando entra em cena Palito (Ariclenes Barbosa), que traz essa sensação de "intimidade" para a trama, uma certa "química" antes ausente. Seu personagem - muito jovem, manco, desenvolto, agressivo porém doce - equilibra em si a fragilidade de sua condição física e uma espécie de raiva contida, uma energia prestes a explodir. Uma ambivalência sedutora, que leva o ator do xingamento ao abraço fraterno em instantes. Sua postura corporal (como na dança do hip hop) parece se adaptar aos espaços disponíveis: um passo firme, o outro manco; metáfora da oscilação entre crime e ordem, a distância entre os dois irmãos da cena anterior: distância (às vezes muito pequena) entre o que é "certo" e o que é preciso fazer para se sobreviver, para se atingir algum objetivo.

Enquanto dança, iluminado pelo farol de um automóvel, Palito termina caindo (seu corpo o trai). A queda coincide com os tiros que marcam o início de uma onda de violência: de um lado, os ataques que a organização criminosa PCC realizou na capital paulista em 2012; do outro, a conturbada (e confusa) reação da polícia militar, que chega a realizar execuções sumárias, tema do recente Orestes (Rodrigo Siqueira, 2015) e também de uma entrevista da defensora pública Daniela Skromov para o El País.

O filme de Luis Dantas não se isenta de mostrar os excessos da corporação, mas evita cair no maniqueísmo: a polícia é vista pelo ponto de vista do jovem soldado Jeferson (Leonardo Santiago), que, apesar de perceber a questionável conduta do vaidoso sargento ao qual está subordinado, não esboça reação a isso. A polícia é tratada como uma instituição condescendente com seus próprios erros que termina por reproduzir seu modus operandi. Jeferson parece sofrer porque adivinha que seu futuro é tornar-se outro sargento como aquele que o humilha, e alimentar o círculo de violência e retaliação que rege as relações entre bandidos e policiais. O filme acerta ao não personificar os vilões e em colocar, entre os policiais, o novato que toca em um grupo de samba, com uma avó carinhosa que se orgulha do neto. Pequena peça em um sistema criado para perpetuar uma mentalidade retrógrada, violenta e, em última instância, assassina.

Sara Antunes é a atriz que trabalha em uma ONG na periferia. Em uma cena, ensaia uma dança hip hop com alguns jovens, uma cena que pode beirar a pieguice - o discurso a respeito "do que se passa em seu coração" - mas que termina por retratar a busca, através da consciência artística, do próprio corpo e do próprio espaço. Afinal, é a partir de espaços e deslocamentos que o filme de Luis Dantas se equilibra: os limites tácitos, as fronteiras sociais, a geografia do bairro de classe baixa, a viagem ao litoral, o encontro inusitado à beira da estrada, os ônibus urbanos.

Na cena do píer, filmada em Mongaguá, no litoral paulista, Palito imagina flertar com Cléo. A câmera realiza movimentos circulares ao redor das vigas de madeira que sustentam a estrutura. Em um motel à beira da estrada, uma cama giratória (e a própria câmera novamente em movimentos circulares) cria uma sensação de instabilidade e de suspense, como se as bordas do quadro se tornassem tão fluidas que qualquer coisa (um outro personagem ou um tiro) pudessem a qualquer momento irromper na imagem. Tais cenas revelam um sentido de urgência ao encenarem um imaginário de desejos perdidos, de esperanças que desmoronam. Em ambas as cenas, vertigem e urgência; esperança, morte, incerteza. Entre a solidão da praia e a decoração um tanto brega do motel - os personagens vestidos com robes brancos de algum algodão grosseiro -, há a realização bastante precária dos encontros amorosos e sexuais, encontros insatisfatórios, em que o contato não chega a acontecer.

Ao final, Damião foge rumo a uma tentativa de imolação, algo entre o terrorista e o vingador: caminha rumo aos policiais de braços abertos, tal uma espécie de Cristo revolucionário. Damião não possui futuro, assim como Palito - uma granada para cada um, uma em cada mão. Mas eis que ressurge Palito, a realizar uma intensa, agressiva e surpreendente dança.

Palito dança, mas para quem? A pergunta encerra o filme. Contra a polícia que confunde e troca os documentos de identificação, temos aqui a busca por uma identidade própria, como era a oficina mecânica para o irmão de Damião. A busca, acima de tudo, por um espaço e, quiçá, por um outro nome.

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