O cinema é um campo de batalha.- Samuel Fuller
É sempre um prazer, depois de ir ao cinema, ler a crítica de Inácio Araujo. Em seus melhores momentos, ele é capaz de sintetizar a essência de um filme em poucos parágrafos, ampliando as sensações do filme em nós, o público. (Essa fórmula está em André Bazin.)
Inácio escreveu, na Folha de S. Paulo de quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015:
Se Sniper Americano ganhar o Oscar de melhor filme neste ano, será essencialmente por duas razões: a) ser um filme a favor da guerra; b) ser um filme contra a guerra.American Sniper não ganhou o Oscar, mas mesmo assim o crítico da Folha percebeu a força do filme justamente a partir de suas arestas (que não são poucas).
Comecemos pelo óbvio: trata-se de um filme de guerra, uma representação da invasão norte-americana ao Iraque, em que acompanhamos a ação pelo ponto de vista (ou pela mira telescópica) de Chris Kyle, "the Most Lethal Sniper in U.S. Military History", como informa o título da autobiografia que serviiu de base ao roteiro do filme. Para encenar esse material, o movimento de câmera predileto do filme de Eastwood é uma leve aproximação para frente, seja no rosto do homem que está prestes a atirar seu rifle, seja no berço do bebê recém-nascido ou no pai que observa do vidro da maternidade. Haveria aí uma tentativa de, ao mesmo tempo, nos colocar no lugar do personagem protagonista, mas também de "estreitar o foco", emulando a ação de um sniper que abandona o contexto para se deter no detalhe - detalhe que muitas vezes será convertido em alvo.
Ao realizar esse movimento, Eastwood não poderia ser mais ambíguo: ao restringir o ponto de vista do filme ao de Kyle, estaria o diretor encampando a visão patriótica e ufanista do personagem principal? Não parece ser o caso, já que o próprio personagem não se sente à vontade ao matar mulheres e crianças ou ao ser reconhecido como uma espécie de herói de guerra. Se há uma ética presente em suas ações, é a boa ética do pragmatismo: faz-se o que é preciso ser feito. - It's a dirty job, but someone got to do it!
Na guerra, a cena é realista, ao estilo de O resgate do soldado Ryan (note-se que Steven Spielberg foi a primeira opção para dirigir a história). A montagem coloca o público em constante tensão. Essa mesma limitação do ponto de vista narrativo aos norte-americanos e a maestria do ritmo do filme acaba acentuando um ponto de interrogação: onde estará o inimigo? De onde surgirá o próximo perigo? A questão é novamente o olhar, a possibilidade de "ver" de maneira mais completa o cenário - algo impossível em plena guerra. Não é por acaso que a sequência final acontece em meio a uma tempestade de areia, em que as próprias identidades - quem é americano, quem é iraquiano, quem é "bom", quem é "mau" - se confundem.
Por isso mesmo, quando uma ameaça se coloca claramente no campo de visão do protagonista, sob sua potente mira telescópica, as questões de ordem moral são resolvidas com um tiro certeiro: se existe risco para os companheiros e o inimigo cometeu o erro de se revelar, não há dúvidas: dedo no gatilho! O importante é manter a segurança dos demais: os que estão em ação, mas, metaforicamente, também aqueles que ficaram em "casa", na "América".
Além de ser um (notável) filme de guerra, American Sniper é também a (convencional) história da construção de um casal e das tensões de um casamento atravessado pela distância e pelo trauma da batalha. A comicidade da cena do primeiro encontro, quando Taya (Sienna Miller) acaba passando mal e vomitando, não convence, bem como suas críticas severas aos militares, um discurso que no momento seguinte será abandonado. A cena em que Bradley Cooper coloca para ninar um bebê explicitamente artificial também nos distancia dessa crise do casal. Eles literalmente estão brigando pelo futuro de uma criança que, claramente, é um artifício, um engano, uma cortina de fumaça... Em outro momento, falando de A conquista da honra, já apontei para essa tensão em Eastwood entre a guerra e a memória da guerra, a maneira como os americanos lidam com as sequelas sociais de seus conflitos, normalmente escondendo-os sob um caldo de conprópriosumismo, patriotismo e hedonismo um tanto pueril. Assim, a artificialidade das cenas do casal Kyle talvez seja menos um "erro" do cineasta e pode ser entendida como a marca de uma tensão do filme entre as "razões do conflito" (lutamos por aqueles que estão em casa, algo que talvez seja falso) e as "motivações do conflito" (a questão verdadeira, lutar por aqueles que estão aqui e agora, lado a lado, no campo de batalha). O choque entre o lar e o front se realiza nessa tensão. E as cenas fora da guerra jamais se "completam": elas são interrompidas antes, e parece não existir desenlace possível, como se todos os conflitos se acumulassem para a guerra em si - ou como se o "inimigo" passasse a ser a projeção de todos os problemas que os próprios personagens carregam neles mesmos.
American Sniper também tem momentos que não se encaixam em nenhum lado dessa oposição entre lar e guerra, e que acabam tocando no que está oculto no filme de Clint Eastwood. Na mesma cena da maternidade, quando Kyle se enerva porque a enfermeira parece não se ocupar de sua filha recém-nascida e começa a perder o controle, a levantar a voz, a bater com a ponta dos dedos no vidro da enfermaria na tentativa de chamar a atenção para si, resta a dúvida: por que as enfermeiras não reagem? Por que negam a evidência incontornável de um homem batendo de maneira cada vez mais agressiva no vidro? Saberiam elas que se trata de uma espécie de matador? Seriam as enfermeiras militantes pacifistas, que resolveram manifestar, pela diferença de tratamento com a filha de Kyle, seu descontentamento contra o esforço de guerra?
Em outro momento, Kyle desembarca no Iraque em sua quarta missão e encontra o irmão que, apesar de também militar, em tudo difere dele: o físico mirrado, o olhar perdido, a fala balbuciada, um descontentamento por estar ali, a fala embargada pela presença eminente da tragédia, pela insanidade da guerra. Na cena que encerra o filme, antes dos créditos, o veterano prostrado em frente a casa da família Kyle tem esse mesmo tipo físico, o mesmo olhar taciturno ou apenas insano. É como se esse veterano, de alguma maneira, fosse, em sentido figurado, o próprio irmão de Kyle. Afinal, a ironia final da trajetória do sniper - que o aproxima dos heróis de John Ford - é a de ser excluído da sociedade que ele mesmo ajudou a proteger, e essa exclusão não se dar pela ação do inimigo, mas dessa mesma sociedade - ou por parte dela. O verdadeiro herói americano (segundo certa tradição cinematográfica) é aquele que não desfruta das benesses pelas quais ele próprio se sacrificou.
Kyle é formado a partir de um tripé cultural que reúne a arma de fogo (o exército), a Bíblia (a religião) e o amor à pátria (o nacionalismo). Durante seus "anos de formação", o atirador aprende os rudimentos do uso das armas com o pai, que também o ensina a respeito de um mundo dividido entre carneiros, lobos e cães pastores. O pai insiste que é preciso ser um cão pastor, aquele que protege os carneiros da ameaça dos lobos. Porém, como é repetido duas vezes no filme, o mal está em toda parte. Apesar da aparente contradição, o mal não é privilégio da bárbarie, mas a própria fundação da ideia da civilização. Portanto, seriam necessários "bodes expiatórios", as tais figuras heróicas (leia-se: bárbaras) a salvar a civilização e que, depois de trabalho feito, precisariam ser extirpadas para a manutenção da paz e da ordem. (O Ethan Edwards de Rastros de ódio seria o exemplo mais bem acabado desse tipo de personagem.)
American Sniper funda-se nas contradições de um personagem com visão política limitada e capacidade bélica excepcional. O ritmo da câmera, solta no tripé, traz a visão de quem busca o próximo alvo; os momentos de "tédio" da guerra (tão bem explorados por Samuel Fuller) são intercalados por picos de adrenalina: imagens mórbidas (crianças torturadas, cadáveres, sangue espirrando por paredes e pelo chão) que não são acompanhadas pelo plano de reação (reaction shot) de nenhum personagem, como se o horror houvesse se tornado cotidiano. Quando volta para casa, Kyle permanece atento para, a qualquer indício, redescobrir esse mesmo horror em seu cotidiano. A conclusão é que o horror está sempre presente, em toda parte, mas - questão de sobrevivência - deixamos de percebê-lo. Tornamo-nos anestesiados. Nesse sentido, é emblemática a cena da TV (nossa janela para os horrores alhures) que se transforma em espelho (novamente, o horror está em nós mesmos, a todo tempo).
Kyle luta contra o horror da guerra, sendo ele próprio a melhor representação desse mesmo horror: uma "lenda", uma máquina de matar. Também por isso, ao final do filme, o "American Way of Life" pelo qual ele lutou lhe será negado. Não fosse pelo final trágico, a história de Kyle seria banal: um homem excepcional em seu métier, que obtém extremo sucesso... e nada mais.
Apaga-se o retrato equânime em relação aos dois lados do conflito. O que interessa Eastwood não é a guerra entre EUA e Iraque, mas a guerra entre os próprios valores americanos. Retornando a O resgate do soldado Ryan, não é conhecida análise que reclame dos alemães serem retratados de maneira "maniqueísta" ou unilateral. American Sniper, na verdade, está a meio caminho entre o filme de Spielberg e a geração da Nova Hollywood que mostrou os veteranos do Vietnã em sua inadaptação: tratados com desdém por parte da população, foram retratados como os "sintomas" de uma geração "doente", os tais "bodes expiatórios" de uma geração que simplesmente idolatrava a influência de John Ford no cinema americano: vide Taxi Driver, Apocalypse Now, Rambo, Platoon, entre outros). - The Horror... The Horror...
A "miopia" retratada pelo filme (e não uma miopia do próprio filme) é essa impossibilidade de conseguir se colocar ao lado do inimigo, seja ele o iraquiano, ou o inimigo "íntimo" (o irmão, o veterano desequilibrado). Exceto o reconhecimento de sua excelência, não existe em American Sniper uma exaltação dos feitos de Kyle; apenas a exaltação de sua morte. As homenagens que o filme de Eastwood exibe pouco antes dos créditos finais (imagens retiradas de telejornais e de outros arquivos) esquecem-se da máquina de matar e passam a celebrar a pessoa humana, o "herói" que pereceu.
Ironicamente, essas homenagens só poderiam acontecer após sua morte. Lembremos novamente de John Ford e a cena do funeral de Tom Doniphon (novamente John Wayne), em O homem que matou o facínora: ele mereceria honras de Estado (trata-se do homem que matou Liberty Valance, o facínora do título em português), mas é melhor que a História siga sendo contada da maneira convencional. Dito de outra maneira: se tivesse morrido no campo de batalha, Kyle seria apenas um herói de guerra; como sobreviveu, sua vida e seus atos não poderiam ser celebrados exceto na ocasião de sua morte, que por ironia do destino aconteceu com a participação direta de outro veterano... (Um "herói" de guerra a matar outro "herói"de guerra? E onde estariam os "vilões" dessa história?)
O que seria o heroísmo, afinal de contas? Se se prestar atenção, esse tema perpassa grande parte da obra recente de Clint Eastwood.
Algumas boas análises do filme:
- Fernando Oriente, no Tudo Vai Bem.
- Filipe Furtado, na Cinética.
- Inácio Araujo, na Folha de S. Paulo.
- José Geraldo Couto, no Blog do IMS.
- Marcelo Miranda, na Cinética.
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2 comments:
Grande texto que faz a geralmente pensar mais ainda nessa obra ambígua, legal que texto simples e direto do Inacio completa o seu.
E Sniper para mim se completa com o Guerra ao terror do da Bigelow, que tem o cara que é viciado e só consegue viver naquele terror.
E realmente toda obra do Clint tem esse tema recorrente Heroi, Imperdoaveis, Gran Torino, etc..
Era um filme desde o seu lançamento causou uma grande celeuma, sem dúvida o melhor que já vi. Já vimos muitos filmes de guerra, no entanto, a qualidade e história, distribuição e efeitos, são os aspectos que caractertizan o sucesso do filme Francotirado, ele foi um dos melhores filmes do Oscar 2015 , um dos filmes que ele manteve a expectativa pública de indicações que poderiam etber.
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