Não pare na pista tem como base a vida do escritor (e mago, ex-maluco beleza, coautor de canções clássicas de Raul Seixas, ex-gerente da indústria fonográfica) Paulo Coelho. Com material tão rico, chega a surpreender que o roteiro seja uma profusão de clichês organizados em três tempos narrativos distintos: o do adolescente-problema, internado em uma instituição psiquiátrica pelos pais; o do jovem adulto às voltas com a contracultura, o teatro alternativo, o sexo, as drogas e o rock and roll; e o do homem adulto em crise, que abandona o emprego em uma gravadora para realizar uma busca espiritual - e, de quebra, escrever O diário de um mago, primeiro passo em sua trajetória rumo às listas de mais vendidos.
O filme lança mão de muito bons atores (Júlio Andrade Fabiana Guglielmetti, Enrique Díaz, Lucci Ferreira) e alguns excelentes coadjuvantes (Paz Vega e Miéle, em papeis pequenos, roubam as cenas) para um resultado apenas mediano: culpa talvez da direção um tanto grandiloquente, que tenta ressaltar o caráter "excepcional" da vida do personagem e dos eventos narrados, e também do roteiro, que parece não saber para onde vai e que desperdiça algumas boas situações construídas. Não faltará quem diga que, numa vida como a de Paulo Coelho, havia muito a ser contado. Porém o filme parece fazer questão de nada "contar", mas tudo "informar".
Um exemplo: após flagrar Paulo Coelho aos beijos com duas mulheres nos bastidores de um show de Raul Seixas, Luiza (Paz Vega) o abandona. O que poderia se esperar então? Uma tentativa de reconciliação? Um homem arrasado por ter perdido a paixão mais avassaladora de sua vida? Não: o assunto logo é página virada, e a preocupação do enredo se volta para a repressão durante o governo militar. Após cinco minutos, este novo assunto é também abandonado e assim sucessivamente, numa espécie de esgotamento constante dos próprios temas do filme...
Um dos poucos temas que atravessam Não pare na pista do começo ao fim é a conflituosa relação entre pai e filho. Não é portanto coincidência que a cena que sela a trégua entre ambos é também o primeiro encontro de Paulo Coelho com sua futura esposa, Christina Oiticica: temos o velho drama da figura paterna castradora, com a posterior redenção familiar (o filho faz as pazes com o pai quando se vê prestes a formar, ele mesmo, um novo núcleo familiar estável). "Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais..."
As melhores cenas são aquelas que retratam momentos talvez "menores": o motorista espanhol que tenta ser simpático e não para de falar; o editor (Gillray Coutinho), constrangido ao recusar a publicação do livro de Coelho; Raul Seixas (Lucci Ferreira) compondo "Al Capone" com o parceiro. O resto do filme parece buscar uma profundidade espiritual (cujas cenas mais constrangedoras são entrecortadas por planos muito rápidos de relâmpagos e imagens do caminho de Santiago), da qual o cinema raramente é capaz, exceto na obra de um Dreyer, de um Tarkovsky ou de um Paradjanov...
Uma figura cinematográfica se repete durante todo o filme: usando uma lente teleobjetiva, a câmera um pouco solta no tripé, o foco se alterna entre planos mais próximos e mais distantes... Nessa escolha, pode-se perceber um dos "ensinamentos" da obra de Paulo Coelho: em linhas gerais, trata-se de aprender a ver "sinais" de forças invisíveis que habitam o mundo (uma semiologia da manifestação do divino). A imagem com pouca profundidade de campo parece metáfora para isso: tudo o que existe para ver está em quadro, mas não exatamente "visível". É necessário "ajustar o foco" (de maneira literal e metafórica) para se perceber outras coisas naquilo que se vê.
O recurso parece coerente, mas sua repetição leva ao desgaste.
Não pare na pista pode ser visto como uma tentativa de misturar profundidade espiritual com um blockbuster à la brasileira, em que a alternância entre tempos narrativos se transforma em cacoete e pouco ajuda no desenvolvimento da narrativa ou na construção de seu personagem... Trata-se de um filme à deriva, como o andarilho perdido em meio ao Caminho de Santiago de Compostela, distante da transcendência e perto dos best sellers de auto-ajuda.
Afundar o dedo na base da unha até que a ferida sangre. Fazê-lo quando um pensamento destrutivo invadir sua mente. Eis um dos ensinamentos do mestre cinematográfico do personagem Paulo Coelho, para que o corpo possa sentir os sofrimentos infligidos ao espírito. Eis também uma tática possível para se atravessar a árdua jornada de Não pare na pista, da abertura até seu termo.
Abaixo, o trailer oficial:
-
1 comment:
Gostei do que escrevestes, eu também não gostei do filme, mas este vazio que ele deixa dá vontade de saber mais sobre o Paulo Coelho, que eu tb não conhecia direito, só que era parceiro do Raul e escritor. Acho a atuação de Julio muito boa, mas aquela máscara é terrível, ele mesmo disse que não teve tempo de ensaiar com ela, e não se reconhece em cena. A progressão da idade das pessoas é ruim, parece que ninguém acompanha o envelhecimento do personagem Paulo, nem mesmo sua esposa. E não gostei da facilidade de criar um raul sem nuanças, parece que era um piradão bêbado que não sabia nada da coisa e roubou as ideias exotéricas de paulo, as quais nem dava bola. Enfim como falasse falta um roteiro interessante. Enfim um filme que dá vontade de ler as revistas exotéricas de Paulo Coelho. Abraços
Post a Comment