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11 March 2014

o menino e o mundo (2013)


Em uma cena de O menino e o mundo, o personagem central descobre um caleidoscópio. Tamanho é seu encantamento que ele parece se esquecer de tudo ao seu redor, e apenas uma série de acasos o salva de acidentes mais graves. É uma sucessão de "pequenos milagres", como os de certa comédia física americana. (Chaplin, em uma das cenas de Luzes da cidade, prestes a cair em um alçapão no meio da calçada, e que se livra da ameaça apenas no último segundo.)

Essa sensação de encantamento (esses "pequenos milagres") percorre(m) todo o longa-metragem de Alê Abreu, animação que apresenta o menino do título em uma longa jornada em busca de seu pai (ou, talvez, de uma melodia perdida em sua infância). Como no caleidoscópio, os movimentos do filme são sutis, mas provocam grandes mudanças visuais (e sonoras). Assim, os cenários se sucedem de maneira delicada, às vezes um traço ou uma cor que se transforma em novas imagens: a casa dos pais, em meio à paisagem branca de uma folha de papel; o trabalho em uma plantação de algodão; um barco à deriva nas violentas ondas do mar; uma auto-estrada tomada por velozes caminhões; as intermináveis escadarias de uma periferia de grande cidade; um porto de cargas com navios carregados de contêineres; uma espécie de fábrica flutuante sobre as nuvens, e fábricas de tecelagem mais "tradicionais", às voltas com um processo de mudança de equipamento (e consequente demissão de funcionários).

O menino tem um irrefreável espírito de descoberta. Seu desenho de olhos muito abertos parece querer reforçar esse esforço por conhecer. Um constante deslocamento vai terminar por apresentar ao menino todo o contexto social do "mundo" do título, que, apesar de estilizado, está longe de ser ingênuo. Temos uma oposição entre campo e cidade, e, em ambos, os trabalhadores pobres são explorados. Há, subjacente à trajetória do menino, uma espécie de percurso das mercadorias, de matéria-prima à manufatura, das fábricas às lojas e outdoors. As cidades do filme são representadas como grandes triângulos apontados para o céu, repletos de imagens publicitárias e comerciais, com grandes áreas periféricas, habitadas pelos trabalhadores (bairros-dormitório, em que os exaustos operários de fábrica dormem enquanto a TV segue a transmitir uma programação desinteressante). Trata-se de uma penetrante metáfora dos grandes centros urbanos, com suas opressoras pirâmides sociais, repletas de imagens midiáticas. O "mundo" aqui representado é uma espécie de máquina devoradora de gente, que tenta reduzir as pessoas a um mínimo denominador comum, transformá-los em "coisa".

Mas há também uma resistência, um reduto de humanidade e criatividade, largamente representado pela presença da música. O menino e o mundo tem um lado operístico, não no sentido de certa grandiosidade da grand opera, mas em sua assumida aposta na música como elemento central para a plena fruição do filme. A música é o signo de algo "humano" (ou de uma humanidade ameaçada) e, em última instância, talvez seja o verdadeiro motor das ações do menino.

A estrutura é eminentemente mais musical que narrativa, a alternar diferentes tons e, principalmente, timbres. A diversidade dos nomes ligados à trilha (assinada por Gustavo Kurlat e Ruben Feffer) mostra bem esse mosaico: os Barbatuques (grupo de percussão corporal de São Paulo), Naná Vasconcelos, Emicida, o Grupo Experimental de Música - GEM (que pesquisa novos e inusitados instrumentos e timbres, numa linha que pode lembrar Hermeto Pascoal), entre outros.

A "tensão" (para tomar emprestado outra ideia da música) chega a um ápice na luta épica entre uma ave colorida e uma águia negra e bélica. É um confronto também musical, com os timbres agressivos da águia negra, em ritmo de marcha militar, finalmente suplantando as notas musicais de timbres inusitados da ave colorida. O filme de Alê Abreu mostra que uma padronização imposta (que aqui remete ao fascismo), mesmo que vencedora, é sempre incapaz de dar conta da diversidade do mundo.

Diversidade é outra palavra-chave para o filme, e sua coerência estética não tem medo de apostar em diferentes ritmos e estilos visuais. O menino e o mundo, mesmo sem ser um filme exatamente "experimental" em sua linguagem, celebra a busca por novas possibilidades criativas e realiza o elogio à pesquisa estética e à diversidade. Espécie de libelo contra a padronização e o tolhimento da criatividade num mundo mecanizado e mecanicizante, não é um filme contra as máquinas, mas contra os perigos da máquina. Uma epopéia colorida e surpreendente, que guarda boas surpresas em suas reviravoltas (nas voltas do caleidoscópio que parece animar o filme).

Ao final, tem-se uma nota de melancolia, mas também o reencontro da melodia da infância, uma memória que reanima tudo. É também a celebração do que vários artistas mais velhos já disseram sobre seu ofício (Akira Kurosawa, por exemplo, já septuagenário, chegou a dar uma declaração nesse sentido): é necessário muito tempo para se reconquistar a liberdade criativa de uma criança. O menino e o mundo mostra essa luta incessante, no mundo moderno, não por uma infantilização (que parece dominante), mas por uma liberdade plena, por um sentimento de "nada a perder" do qual apenas as crianças (e os loucos, e alguns artistas) seriam capazes.

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