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13 March 2014

eles voltam (2012)


Eles voltam lida com a sensação da deriva.

Logo no primeiro plano, vê-se, ao longe, dois vultos descerem de um carro em uma beira de estrada. O carro parte, deixando para trás Cris, de 12 anos, e seu irmão, um pouco mais velho. Ele logo vai em busca de ajuda e não volta.

Cris dorme na beira da estrada e, no dia seguinte, um menino em uma bicicleta a interpela. A menina de classe alta começa então seu périplo: é acolhida primeiro num assentamento do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra. Depois, na casa de uma mulher que, para ganhar seu dinheiro, trabalha em uma feira, como diarista, vendendo cerveja na praia ou em qualquer outro "bico". Em determinada cena, moeda de troca pela "hospedagem", Cris ajuda na faxina do mesmo condomínio fechado em que seus pais tem uma casa de veraneio. Não falta ironia nessa Cinderela às avessas.

Até esse ponto, a filha de classe alta não é uma "invasora", mas uma "hóspede". Todos (ou quase) se condoem do fato dela ter sido abandonada pelos próprios pais. As tentativas de contatá-los nunca tem bom termo, e as autoridades são lentas e inaptas... Ela está exilada nas margens do país que costumava habitar.

A deriva de Cris percorre também o trajeto de um sentimento de coletivo (o MST) para uma experiência extremamente individual (ou individualista): da luta coletiva pela terra à colega de escola, também filha da classe alta, que morou em seis cidades e fala com os amigos pela internet...

Os tempos dos planos do filme de Marcelo Lordello tem essa sensação de deriva, de algo que parece flutuar sem encontrar seu ponto de equilíbrio. O ensimesmamento de Cris, suas frases lacônicas, parecem indicar certa dificuldade de se conectar com outras pessoas. Porém, uma cena com o avô, ambos em frente à TV, mostra que algo da jornada pode tê-la marcado, nem que apenas no discurso.

O cinema pernambucano parece se caracterizar pelos contrastes sociais. Existem paralelos entre Eles voltam e O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho: em ambos, esse olhar que tenta perceber como a classe alta e a classe baixa se relacionam, que mecanismos parecem reger as divisões de classe do país. Porém, em Kleber Mendonça o espaço doméstico é apaziguado (o desencontro acontece sempre com algo exterior à casa, um "outro"), enquanto Marcelo Lordello trabalha a ideia de famílias que são tão mais dilaceradas quanto menos se apoiam em um tecido comunitário mais amplo.

Filme-mosaico, road movie social, Eles voltam confunde a geografia para nos revelar a (in)justa distância entre os universos retratados no filme. Da beira da estrada, pouco se vê do MST, e da casa da faxineira, nem se imagina que o condomínio fechado pode estar ao lado. Quando as colegas de escola sobem ao topo do prédio e observam ao longe, temos esse mapeamento do mundo social, o desejo de olhar através, de descobrir as histórias e as pessoas que habitam aquilo que antes era apenas uma paisagem na janela.

Os contrastes são, ao mesmo tempo, sutis. Porém, existe grande estranheza provocada pelas aproximações do olhar da câmera de Marcelo Lordello. É quase o Unheimlich de Freud: o familiar que, de repente, deixa de ser familiar.

A família desestruturada ao final do filme é a sombra de uma sociedade também desestruturada. A metáfora de um país.

Aqui, entrevista de Marcelo Lordello a Inácio Araújo.

Aqui, texto do blog de Fernando Oriente.

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