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03 March 2014

la grande bellezza (2013)



As forças e fraquezas de A grande beleza residem, ambas, em seu amplo leque de possibilidades estilísticas: em dado momento, sob uma luz de publicidade de agência de viagens, suaves movimentos de câmera revelam os monumentos de Roma ao som David Lang, Arvo Pärt ou Henryk Górecki; depois, a música eletrônica embala uma festa com elaboradas piruetas de grua, uma montagem veloz, a tentativa de dar conta do estado de êxtase do mundo moderno (e mundano) da cidade.

Do equilíbrio da arquitetura clássica ao excesso kitsch de certo design contemporâneo, o filme elabora aproximações e contrastes, reunindo diferentes estéticas e estilos, dando a impressão de quem folheia um catálogo de história da arte. O comportamento da câmera, com movimentos sempre bastante elaborados, entre o maneirismo e mesmo rococó, se assemelha à curiosidade do personagem protagonista, que parece se interessar por tudo o que seja "belo" — ainda que essa beleza seja, em si, apenas uma superfície oca). (Mas o que seriam as imagens contemporâneas além de meras superfícies ocas?)

No quarto de dormir do jornalista Jep Gambardella (Toni Servillo), o teto se transforma em uma tela vazia na qual sua memória projeta as lembranças de uma viagem, na adolescência, junto ao mar. O mundo de Gambardella se divide entre o hedonismo possibilitado por sua condição social e os adiamentos do projeto da busca pela tal "grande beleza" do título. Uma vida entre o prazer e o tédio, em uma tentativa (evidentemente inútil) de que um anule o outro. Uma partida que termina sempre sem vencedores.

O fascínio a respeito do filme de Paolo Sorrentino vem justamente desses vazios, desses corpos que deslizam em pistas de dança como as imagens deslizam sobre a tela (e penso aqui no influente texto de Serge Daney). Se existe melancolia, não é por uma espécie de beleza perdida, pela saudade de um passado outrora eloquente. (E que cidade seria mais eloquente que Roma quando se trata do "passado"?) A melancolia no filme de Sorrentino vem de uma saudade do próprio presente, como se aquelas pessoas não estivessem ali, como se a luz branca levemente estourada projetada sobre os personagens remetesse a um spot em um museu, que ilumina as obras para que as pessoas possam melhor vê-las e também para "destacá-las" do resto do mundo.

A mesma luz que aparta os personagens da paisagem (assim transformando tudo em uma gigantesca cenografia de segunda mão), também os aparta uns dos outros, como se cada pessoa fosse uma peça em um gigantesco jogo de armar. Em A grande beleza, todos parecem mortos: existências que se resumem a um eterno e vazio presente, e em que o passado (o único passado permitido) é um depósito de futilidades, e em que o futuro é a promessa da repetição da interminável festa de hoje. Como se a própria História tivesse parado, e todas as suas obras se encontrassem em um redemoinho, que desce rumo ao fundo do Maëlstrom de uma Europa em crise.

A morte está à espreita em grande parte de A grande beleza: em um nariz que sangra; na performance farsesca de uma clínica "milagrosa"; durante um funeral (quando as regras de etiqueta são mais importantes que o sentimento luto pelo falecido), ou na figura cadavérica da "santa". Italiano, Sorrentino precisa se deparar, além da ameaça da morte, com a presença da Igreja Católica (que, afinal de contas, através de séculos de fé  perseguição, de civilização e intolerância, terminou por financiar grande parte das belas obras que o filme retrata). O resultado parece não se decidir entre a lembrança de um Rossellini (a possibilidade latente do milagre) e um Fellini (a ironia refinada e anticlerical). Aliás, o autor de A doce vida é uma espécie de "guia" para Sorrentino, que recorre a locais que serviram de cenário ao diretor de La dolce vita, bem como a uma galeria de personagens caricaturais bem ao gosto de Fellini.

A câmera e as luzes de A grande beleza parecem sempre em movimento, como se a festa não pudesse parar — à exceção de alguns diálogos convencionalmente filmados em campo e contracampo. Mesmo as palavras que saem da boca dos atores, especialmente de Toni Servillo, parecem malabarismos, com ritmo marcado (nas narrações over) e cadência envolvente. Apenas um escritor teria tanta intimidade com as palavras, e conseguiria desenhá-las no ar como se elas também fossem matéria, como se também pudessem ser catalogadas nessa cidade-museu desse filme-museu que percorre corredores e mais corredores repletos de estatuária, assim como o personagem percorre as lembranças de sua adolescência e repassa a descoberta da paixão e do corpo feminino.

A força e a fraqueza do filme residem em uma contradição: se tudo é belo, nada o é. Se a vida é uma grande festa, essa festa não passa de uma mentira. Os corredores do filme de Sorrentino são tão mais fascinantes porque parecem retornar sempre para seus inícios, e esses inícios nunca são os mesmos. Uma ilusão de movimento constante que não leva a lugar algum. Daí um certo fascínio do cineasta pela geometria da cidade e pelos jardins em forma de labirinto; pelas margens dos rios que correm a esmo. A própria cidade de Roma como labirinto da memória. Perder-se nesses caminhos — ninguém há de negar — tem também algo de um delicioso transe...

A personagem de Jep Gambardella passa seus dias inebriado nesse transe. É um elitista, um burguês que se imagina acima das demais, que pode dormir até tarde sem grandes preocupações, que faz questão de deixar claro sua predileção pelo que é sofisticado e, ao mesmo tempo, supérfluo. Seria o retrato de alguém apenas mesquinho e desprezível, não fosse ele também impiedoso, melífluo e auto-irônico. Um pouco mais (mas não muito) que os demais personagens, Gambardella parece saber que tudo não passa de um truque, uma grande e elaboradíssima mentira. Que as imagens estão aí para nos embevecer e nos enganar, e é exatamente isso que o filme de Sorrentino faz, de maneira deliberada.

A grande beleza não consegue escapar da armadilha que ele mesmo constrói, os aparentemente infinitos labirintos de imagens pelos quais os personagens e a câmera adentram... Sorrentino se revela menos um cineasta e mais um curador de imagens em uma exposição... Mas como não ser assim, em meio à balbúrdia das imagens contemporâneas? Claro, talvez houvesse outros caminhos, mas então estaríamos em outro filme.

A conclusão, com Jep de volta aos cenários de sua lembrança (primeira vez em que se encontra longe de Roma) pode ser lida de maneira otimista — como se a busca do personagem tivesse chegado a um ponto determinante, como se ele recuperasse sua criatividade, como se o milagre fosse possível — ou apenas irônica. Assim sendo, preferimos a ironia. Como se a beleza fosse sempre fugaz, como se as promessas que fazemos para nós mesmos durassem apenas um átimo, como se tudo se desmanchasse no ar, na fumaça do indefectível cigarro do protagonista...

A partir dessa dissolução da História e das imagens, A grande beleza mostra-se um filme quase etéreo. Filme-labirinto, filme-museu. Filme-livro por ser escrito, livro inexistente, suas páginas voando ao vento junto aos inesperados flamingos.


Aqui, o texto de José Miguel Wisnik, em O Globo.

Aqui, o texto de Manuel da Costa Pinto, na edição de fevereiro da Cult.

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