Mesmo sem ser exatamente "pornográfico" ou "erótico" - como sugeriam a campanha publicitária e algumas declarações feitas antes de seu lançamento -, Ninfomaníaca dialoga com a tradição da pornografia e do erotismo.
Um dos elementos centrais dessa tradição é a(s) mulher(es) narradoras e/ou protagonistas. De Aretino ao Marquês de Sade, do sexo explícito em Garganta profunda ao soft porn em Emmanuelle, são os mistérios do sexo feminino (em obras geralmente criadas por pessoas do sexo masculino) que preenchem as estantes dedicadas ao gênero. Em Ninfomaníaca, a protagonista é Joe, mulher cujo corpo desacordado surge, logo nas primeiras cenas, caído em um beco. O cenário é levemente artificial e a câmera de von Trier tem algo de Andrei Tarkovsky ao percorrer as texturas das paredes úmidas e ao revelar, sem pressa, elementos ao fundo do quadro. Poderia lembrar Tarkovsky ainda mais, não fosse a trilha musical da banda Rammstein, em alto volume. Essa câmera "táctil" do diretor dinamarquês, como em toda sua carreira, está associada à agressividade, à tentativa de provocar algum desconforto no espectador.
Joe é encontrada por aquele que será seu ouvinte e interlocutor (Seligman). Como uma Sherazade pornógrafa, ela o enreda em uma narrativa às vezes inverossímil, às vezes divertida, muitas vezes perversa. Em Ninfomaníaca, a sedução erótica atravessa a imaginação e a transmissão de fantasias - que essas mesmas fantasias contenham imagens eróticas ou não, é o que menos importa.
A narrativa de Joe, que ela assume ser sua própria história, gira em torno da obsessão pelo sexo. Ela demonstra conhecer os segredos da narrativa longa e, ao relembrar como "fisgou" seus parceiros sexuais, são também "fisgados" seus ouvintes: o da diegese (Seligman) e os extra-diegéticos (a plateia do cinema). O filme, que não se esquiva da comparação com o texto literário, divide-se em cinco capítulos, com certa independência estilística entre eles: 1) The Compleat Angler trabalha com planos próximos e montagem paralela entre a ação central e uma espécie de paródia de algum insípido documentário televisivo sobre pesca; 2) Jerôme, em que a radicalidade do ponto de vista narrativo acentua as dúvidas do espectador: por que ela não fez sexo na cena do elevador? o que acontecerá quando ela confessar seus sentimentos? aqui, o desconhecimento sobre as intenções de Jerôme (e também essa eterna ignorância a respeito do Outro) torna-se central; 3) Mrs. H, episódio mais próximo ao estilo realista do Dogma 95, começa com a velocidade de uma narrativa elíptica para se transformar em uma cena de crise familiar que tenta levar o constrangimento ao limite - Uma Thurman, em excepcional performance; 4) Delirium: em preto e branco, com enquadramentos que privilegiam o centro do quadro, é o capítulo mais crepuscular do filme; 5) The Little Organ School, com suas telas divididas e uma câmera na mão que remete aos anos 1970 (com certa inspiração do cinema pornográfico dessa época), encerra o filme e cria o gancho dramático para a parte 2.
A maneira como o título do filme aparece grafado nos créditos inicial e final também revela algo sobre os diálogos entre Joe e Seligman: Ninf()maníaca, com os parênteses no lugar da letra "o". Além de conotar uma vagina, substitui-se a letra - um "buraco" tipográfico? outro buraco sexual? - pelos parênteses, espaço vazio a ser preenchido por digressões. (O site oficial informa que o gênero de Ninfomaníaca é "digressionista".) Talvez frustrando quem entre no cinema à procura de sexo explícito e excitação erótica, a estrutura do filme se apoia em longas digressões a respeito (e a partir) do sexo. Em meio ao relato de Joe, Seligman "abre parênteses", cria contrapontos à narrativa da mulher e tenta - às vezes com ar um tanto professoral - enquadrá-la(s) na cultura. Não por acaso, a ideia da polifonia em Bach é o tema do capítulo final desta primeira parte de Ninfomaníaca: a lógica "matemática" das composições do músico alemão a serviço do "êxtase" (em Bach, êxtase religioso e estético).
Lars von Trier encampa esse discurso professoral e abusa de recursos didáticos: imagens que ilustram um texto sobre pesca, outro sobre Edgar Allan Poe, outro sobre os números de Fibonacci... algarismos impressos na tela nos impedem de ignorar o número exato de estocadas em Joe quando ela perde a virgindade. Tudo talvez um pouco redundante e excessivo (imagem que repete a palavra, palavra que repete a imagem). Mas não seria a pornografia o território dos excessos? E não seria o mundo contemporâneo a época por excelência desses mesmos excessos?
Sem ser um filme "excessivo" (trata-se exatamente do contrário), mas certamente verborrágico, Ninfomaníaca parece questionar o tempo e o espaço em que o excesso seria possível: um excesso que parece se tornar normativo em tempos do Google (o excesso por excelência), um excesso que marca, paradoxalmente, a impossibilidade de qualquer outro excesso. Daí o parentesco entre Sade e von Trier (as digressões deste - várias janelas abertas em uma tela de computador - equivaleriam ao ímpeto catalogador daquele).
Muitos bons textos foram produzidos sobre o filme, o que nos isenta de aqui repetir seus argumentos. Em sua coluna na Folha de S. Paulo, o professor e filósofo Vladimir Safatle cita Bataille:
O filósofo francês Georges Bataille costumava dizer que o erotismo era uma das poucas formas que nos restavam para realmente nos perdermos pois, quando assumido em todas suas consequências, ele sempre nos levava para além do cálculo utilitarista de maximização do prazer e afastamento do desprazer.Em sua crítica na mesma Folha, Inácio Araújo aponta o mistério das imagens de von Trier:
A sexualidade, em Joe, não é angústia, felicidade, gozo. Não é nada, a rigor. É um ato desprovido de sentido, embora sempre em busca de sentido.Em sua coluna no site do Geledés Instituto da Mulher Negra, Eliane Brum escreve magistralmente sobre o vazio inerente à sexualidade:
Ninfomaníaca é um filme delicado, de extrema beleza, sobre a sexualidade feminina. O que Joe busca, ao se deixar penetrar por tantos pênis diferentes? Mais do que se deixar dominar, ela acredita dominá-los. Os pênis de todas as cores, formatos e tamanhos são objetos que fazem o que ela quer quando se enfiam dentro dela. Fazem o que ela quer inclusive quando ela permite que façam o que querem. Indiferente, ela os manipula, os engole e os cospe. Por quase duas horas de filme a vemos se mover com o membro de tantos dentro de si, mover-se mecanicamente.E o amigo José Geraldo Couto, em seu blog no site do Institudo Moreira Salles, analisa o filme de maneira atenta e nele identifica as propostas estéticas do cineasta:
Estamos aqui, a meu ver, no cerne do pensamento estético e filosófico de Lars von Trier, que contempla a humanidade com uma dupla lente, a do trágico (a solidão irredutível do indivíduo, a vacuidade dos bons sentimentos, a dor inescapável) e a do lúdico (os jogos, o humor, a representação, o deleite estético, a paródia). Pode reparar: esse binômio aparece em todos os filmes do diretor.Leituras vivamente recomendadas enquanto se aguarda a estreia da parte 2 nos cinemas.
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