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02 February 2014

eduardo coutinho (1933-2014)


Uma semana muito, muito triste, na qual perdi um amigo e um mestre.

Na madrugada do dia 30 de janeiro, meu querido amigo, o poeta Donizete Galvão, morreu de infarto aos 58 anos. Poucos dias depois, em 2 de fevereiro, o cineasta Eduardo Coutinho morreu em consequência de facadas desferidas, segundo a versão divulgada até o momento, por seu próprio filho.

Donizete, acima de tudo, adorava os encontros, e Coutinho fica para a posteridade como "o cineasta do encontro" - epíteto que, apesar de apenas arranhar a complexidade de seus filmes, aparece repetidamente nos obituários e nas homenagens.

Conheci Coutinho em um curso no Espaço Unibanco (atual Itaú) de Cinema, pelos idos de 2003. Por uma semana, ele conversou sobre sua trajetória, seus filmes, suas escolhas, o cinema, a vida. Fumava sem parar. Era rápido nas respostas, muito inteligente, algo peremptório, extremamente generoso. Quem vê seus filmes percebe, antes de tudo, que se tratava de alguém que sabia ouvir. Prestava atenção às pequenas inflexões de fala, enquanto o brilho de seus olhos e o movimento sutil das sobrancelhas demonstravam a velocidade de seu pensamento. Perscrutava tudo com o olhar atento. Nessa ocasião, foi exibida uma montagem preliminar de Peões, ainda com o depoimento (depois cortado da versão final) de uma mulher afirmando que Lula bebia muito nos tempos de sindicalista...

Quase uma década mais tarde, em um fim de tarde de sábado, após a exibição de Um dia na vida no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro, um grupo de amigos foi ao Baixo Gávea, Coutinho entre nós. Sentei ao seu lado. Ele se dividia, tentando dar atenção a todos. Tomou uma cachaça, cerveja, comeu um bolinho de bacalhau e fumou muito... Um ano mais tarde, nova exibição de Um dia na vida, agora no Cinusp, com Ismail Xavier e Coutinho conversando com a plateia.

Foram nessas e em algumas outras breves ocasiões que estive mais próximo de Eduardo Coutinho. Se compartilho essas memórias, não é para inventar uma falsa intimidade - que jamais houve. É apenas para celebrar alguns poucos e fugidios "encontros" com esse grande, imenso cineasta, que nos deixa de maneira tão trágica.

Guardo ainda algumas palavras ao filho do cineasta e à maneira com que a imprensa, até agora, está lidando com o caso. A palavra "assassinato" aparece aqui e ali. Sem querer diminuir o tamanho da tragédia, é necessário muito tato em relação a Daniel Coutinho. Se ele possui graves problemas psicológicos, como parece ser o caso, talvez o crime não lhe possa ser imputado. Sugeriria que o verbo "assassinar" seja trocado por "esfaquear" - igualmente cruel, igualmente duro, igualmente letal, mas que talvez ilustre melhor o gesto irrefletido, o gesto limítrofe de um filho que se voltou contra os próprios pais. Repito que não se trata de eximir a culpa, mas de adiar ao seu devido tempo o julgamento. Mas a imprensa precisa correr na velocidade das rotativas, e a justiça é morosa. É bom também lembrar que Daniel Coutinho, ao que tudo indica, precisará, a partir de agora, de grande assistência.

Saudade, Donizete Galvão! Saudade, Eduardo Coutinho! Ficam os poemas de um e o cinema do outro.

Uso
(Donizete Galvão)
O uso dá caráter às coisas
como se o tempo maturasse
em suas moléculas
uma severa arquitetura

A virtude do menos
enobrece a casa
com a sua recusa
de adornos sem serventia.

O que o homem gasta
em suas mãos
adquire a aura
de suas dores.

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