O plano inicial de Um estranho no lago mostra um automóvel chegando em um estacionamento improvisado, um descampado em meio à vegetação. Em pouco tempo saberemos que o carro é de Franck, e que o estacionamento serve os frequentadores do lago que dá título ao filme de Alain Guiraudie.
O lago é frequentado por homens que se banham, nadam, flertam, encontram-se e perdem-se em um bosque nas proximidades, fazem sexo. O filme compõe um painel generoso de tipos humanos: alguns são voyeurs, alguns são ciumentos; alguns, muito preocupados com as doenças sexualmente transmissíveis, outros não se importam com o uso de preservativos etc.
Os corpos nus estão por toda a parte, e a câmera de Guiraudie, ao invés de velar os órgãos genitais de seus protagonistas, parece ter prazer em deixá-los completamente à mostra nos rigorosos enquadramentos do filme. Em algum momento, as imagens lembram a verve provocativa e um tanto exibicionista com a qual os modelos de Lucian Freud posavam para os nus masculinos do pintor inglês (nascido na Alemanha), neto do pai da psicanálise. Guiraudie compartilha essa cultura do exibicionismo, pois quem está no lago, a princípio, compactua com a ideia de ver e ser visto.
O único que parece um tanto apartado é Henri, homem de meia-idade, barriga avantajada, que nunca se desnuda, nunca nada, nunca faz sexo... Henri apenas observa... Ele terá longas conversas com Franck, o protagonista, e será o único personagem em Um estranho no lago que não se furta a comentar seu próprio passado ou suas perspectivas para o futuro. Os demais são quase sempre anônimos, corpos sem nome que cruzam os caminhos uns dos outros, provocando olhares e desejos, que parecem passar suas tardes naquele lago como se estivessem em um lugar de completa exceção.
Em determinada cena, surge Michel. Bonito, olhar misterioso, corpo atlético, exímio nadador - parece percorrer grandes distâncias em poucos instantes. Franck fica imediatamente fascinado. Quando sai da água do lago, seu corpo em contraluz, a silhueta de Michel remete à ideia de alguém que vem de outro lugar: um lugar mais perto do mito. Existe algum paralelo com o personagem de Michel e o de Terence Stamp em Teorema, de Pier Paolo Pasolini: personagens que parecem não possuir os mesmos códigos morais dos demais e que causam profundo desequilíbrio nos mundos que visitam.
Pasonlini é também uma forte referência no tratamento sem cerimônia dos corpos nus e do sexo, mas Guiraudie não compartilha totalmente da joie du vivre da "Trilogia da vida", nem do interesse pela dominação e pelos fetiches sadomasoquistas de Salò. Um estranho no lago encontra-se em algum lugar intermediário entre prazer e morte, muitas vezes confundindo esses dois polos de atração.
O plano do automóvel que chega ao estacionamento seguirá se repetindo, com leves diferenças, com mais ou menos carros, com diferenças na luz, indicando a hora do dia etc., marcando a passagem dos dias. A repetição, de maneira geral, mostra-se como uma das marcas de estilo de Um estranho no lago: sempre o mesmo lago, praticamente as mesmas pessoas, os mesmos gestos e rituais. Sempre o sexo no bosque, os movimentos repetitivos e anônimos, os corpos vagando em busca de algum encontro. Essa espécie de círculo vicioso parece aprisionar os personagens e conferir algo de mórbido para a encenação. O crítico Inácio Araújo, em seu blog, apontou, com razão, que os personagens se movem como zumbis. Os cenários de Um estranho no lago são idílicos, mas a mesma morbidez que Lucien Freud retrata em seus quadros (os violetas que lembram hematomas, os cenários decrépitos e abandonados) aparece, no filme de Guiraudie, na estrutura obsessivamente repetitiva e na mise-en-scène. Além de Henri, outro personagem que parece não pertencer a esse mundo é o inspetor de polícia, que, com sua figura alongada, uma paródia do vampiro de Nosferatu, de F. W. Murnau, parece reforçar uma iconografia de filme de horror. Uma de suas aparições, no meio da noite, com apenas uma luz a iluminá-lo, reforçará essa ideia, que se tornará ainda mais intensa nas sequências finais.
Ao lado de O azul é a cor mais quente, de Abdellatif Kechiche, Um estranho no lago cria uma nova iconografia (muito mais explícita) das relações sexuais homoafetivas. Porém, as semelhanças parecem terminar aí entre esses dois recentes filmes franceses. Kechiche se interessa pelo período de formação de sua protagonista, do final da adolescência ao início da idade adulta, e as referências constantes à literatura não deixam dúvida de se tratar de um Bildungsroman, como bem apontou o crítico José Geraldo Couto em seu blog. O filme de Guiraudie, por outro lado, é um conto repleto de beleza, morbidez e morte, um estudo sobre dois mundos que entram em choque: o lago – onde, aparentemente, “tudo é permitido” – e o “resto”, o exterior, que nunca é mostrado, mas cuja presença se faz sentir seja nos diálogos, seja na presença do inspetor de polícia.
O lago é caracterizado como essa espécie de lugar de exceção, onde a presença de Michel se torna perturbadora justamente por testar os limites (morais) desse universo um tanto amoral – “além do bem e do mal”, parafraseando um dos títulos do filósofo Friedrich Nietzsche – em que “tudo é permitido” e onde as promessas de prazer são imensas. Trata-se também de um mundo da morbidez, e as relações ali criadas parecem confinadas a ali permanecerem.Um mundo sem tempo definido, em que as pessoas não precisam se preocupar com passado ou futuro. Esse mundo do lago e o exterior, Guiraudie não os opõe de maneira radical, permitindo que eles se interpenetrem e, algumas vezes, se confundam.
Um estranho no lago parece exigir que, de agora em diante, as imagens de sexo explícito possam ser debatidas fora de seu "gueto". Mas, entre as questões que permanecem, uma das mais urgentes diz respeito ao limite entre a afirmação sem pudores do sexo retratado sem ressalvas e a crítica a uma obsessão mórbida (tanto homo quanto heteroafetiva) que busca por sexo de maneira incessante e quase patológica. O mais inquietante no filme de Guiraudie é que, à primeira vista, não há limites claros entre essas duas possibilidades. O que torna o filme tão avassalador é a extrema falta de cerimônia com que Guiraudie passa da fábula moral (em alguns momentos, sem nenhuma verborragia, não se está muito longe do Dostoiévski de Crime e castigo) à pornografia.
Aqui, texto de Fábio Andrade para a Cinética.
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