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28 February 2014

inside llewyn davis (2013)


Para o bem e para o mal, os irmãos Ethan e Joel Coen desenvolveram, durante as últimas três décadas, uma obra coerente em temas e estilo: 16 longas-metragens desde Gosto de sangue (Blood simple, 1984) até o recente Balada de um homem comum (Inside Llewyn Davis, 2013), filmes que se alimentam da tradição do cinema de gênero americano - em especial o film noir -, e também da comédia de erros de fundo sarcástico, cujos luminares seriam, nos EUA, Preston Sturges, e, na Inglaterra, Alexander Mackendrick, cujo Matadores de velhinhas (The Ladykillers, 1955) foi devidamente "homenageado" pelos Coen (The Ladykillers, 2004).

Duas matrizes - o cinema de gênero (crime ou filme noir) e a comédia de erros sarcástica e/ou de humor negro - representadas em seus dois primeiros longas: Gosto de sangue e Arizona nunca mais (Raising Arizona). Duas matrizes que se mesclam em todos os filmes dos irmãos / roteiristas / diretores.

Ajuste final (Miller's crossing) ou O homem que não estava lá (The Man Who Wasn't There), cada qual a seu modo, trazem os clichês narrativos e a iluminação contrastada do noir. Porém, seus protagonistas estão muito distantes dos típicos detetives hard boiled da literatura policial estadunidense dos anos 1930: os personagens dos irmãos Coen são pessoas "comuns", ora prosaicos como a policial grávida de Fargo e o barbeiro de O homem que não estava lá, ora meramente "ridículos" (e caricatos), como o inventor do bambolê - Tim Robbins em Na roda da fortuna (The Hudsucker Proxy, 1994) - ou o instrutor de ginástica interpretado por Brad Pitt em Queime depois de ler (Burn After Reading).

Em Inside Llewyn Davis, temos novamente - conforme o título em português - "um homem comum". Llewyn Davis (Oscar Isaacs) é um cantor folk que toca em bares e, sem moradia fixa, passa as noites na casa de um ou outro amigo, até que algum desentendimento o leve a procurar nova pousada... Um homem errante e seu violão. Ou, ao menos durante uma parte do filme, um homem, seu violão e um gato.

Davis parece um ímã de problemas: sem dinheiro, com uma carreira mal gerenciada por um empresário simpático, porém incompetente. Andando pelas ruas frias de uma New York invernal, Davis não tem sequer um casaco. A inspiração para o personagem não é um bem-sucedido Bob Dylan (que aparece de relance em uma cena ao final do filme, interpretado por Benjamin Pike), mas o bem mais desconhecido Dave Van Ronk. Para os curiosos, a revista Salon mostra todas as "inspirações" dos Coen para criar os músicos que aparecem no filme...

A estrutura da narrativa parece empilhar as pequenas derrotas de Davis, um personagem típico do humor judaico dos Coen: "perdedores" que ainda podem rir de si próprios. Uma vida pequena, estreita como os corredores dos prédios de apartamentos, sem grandes possibilidades.

Mas a época do filme, 1961, também diz muito: é o início de uma década de contestações que vão culminar, na França, no maio de 1968 e, nos EUA, nos protestos contra a guerra do Vietnã. Os cantores folk tiveram participação ativa, como música de protesto, na contestação de valores vigentes e na visão de um futuro utópico - e talvez "Blowin' in the wind", de Dylan, seja a música que melhor consegue resumir todos esses anseios. Era ainda o tempo de uma identidade da América, com o folk representando uma "raiz" popular e comum. Mas os anos 1960 terminariam com o hedonismo e as guitarras elétricas do rock and roll rompendo as barreiras de comportamento e acirrando a cisão de gerações que se acentuou durante toda uma década.

Mas em Inside Llewyn Davis, o mundo ainda é dominado pelos velhos, independentemente da idade: do empresário e sua secretária (ambos idoso), ao produtor musical (de visão tacanha). Do purista do jazz (John Goodman) ao funcionário do sindicato dos marinheiros mercantes. Os jovens parecem oscilar entre "integrados" (como o soldado cantor), bons-moços (Justin Timberlake) ou os raros inadaptados, como Davis. Aqueles que parecem não pertencer a este mundo e nele não terem lugar. Aqueles que, poucos anos mais tarde, tentariam quebrar todas as regras, questionar todos os valores e, no limite, tentariam fazer a revolução.

As precárias condições de sobrevivência e as incertezas em relação ao futuro oprimem Llewyn Davis, e a câmera dos Coen não raro o reenquadra entre os batentes de portas ou janelas, em corredores apertados ou espremido entre lances de escadas. A luz também o coloca sempre em cantos mal iluminados (ou com uma iluminação cuja incidência o incomoda). Na penumbra de um bar mal iluminado ou em um beco escuro, ele é apenas uma silhueta. Seus únicos e breves momentos de graça são sobre o palco: algumas canções ao início e ao final do filme, uma gravação inesperada em estúdio (que se torna cômica), e uma das grandes cena do filme: a apresentação para o produtor interpretado por F. Murray Abraham. Aqui, toda a tensão e a atmosfera são construídas apenas com a luz, os silêncios, a presença física dos dois personagens (prenhes de significados) e pela contenção da interpretação musical de Oscar Isaacs.

Um filme que não apresenta grandes conquistas ou grandes derrotas, em que tudo é pequeno, e no qual as reconciliações são impossíveis: Davis não se reconcilia com o pai, com a irmã, com a ex-amante ou com a indústria fonográfica... O filme começa e termina com um homem tocando seu violão em um palco e, logo depois, um soco. A possibilidade da expressão artística e a agressividade da vida fora dos palcos. A agressividade da vida fora dos palcos que levará à impossibilidade da expressão artística que não leve em conta essa mesma violência, essa cisão da sociedade americana.

Os atores são um dos pontos altos aqui, à exceção de uma Carey Mulligan num tom acima do restante do elenco, uma espécie de resquício das caricaturas superficiais que habitam parte da obra dos Coen. Mesmo a irmã de Davis, que também apresenta um traço histriônico, é mais equilibrada.

Um belo filme, que apresenta um mundo em dissonância.

Aqui, o texto de José Geraldo Couto, quando da exibição na abertura da 37ª Mostra Internacional de São Paulo.

Aqui, o texto de Cássio Starling Carlos, na Folha de S. Paulo.



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