A primeira imagem de Hoje eu quero voltar sozinho mostra dois corpos deitados à beira de uma piscina. A câmera em plongée, num ângulo de 90 graus em relação ao chão, e a imagem dividida ao meio (em cima, o corpo de Leonardo; abaixo, o azul da piscina) ressaltam as linhas horizontais. As cores são levemente saturadas, e a conversa entre os dois amigos adolescentes gira em torno da descoberta da sexualidade, a experiência do primeiro beijo. Destacam-se os corpos seminus, muito jovens, diria-se até imaculados.
A construção horizontal aparece em outras imagens do longa de Daniel Ribeiro, e mesmo um dos temas centrais da narrativa - um adolescente cego que insiste em ser tratado por seus pais como qualquer outro garoto de sua idade - representa, de maneira metafórica, a busca por um mundo mais "horizontal", sem tantos desníveis. O universo representado no filme é também fortemente "horizontalizado": o mundo dos adolescentes de um colégio de classe média (ou média alta) de São Paulo. À parte sua cegueira, Leonardo é um adolescente que enfrenta dilemas parecidos com outros adolescentes de sua classe social: pais um tanto superprotetores, a busca pela afirmação da identidade, a descoberta da paixão e do desejo sexual.
Haverá quem reclame, talvez exigindo um outro filme, que denunciasse os problemas que os cegos enfrentam em seu dia-a-dia para se inserir na sociedade ou as dificuldades de adaptação ao cotidiano da escola. Apesar de um dos colegas de sala insistir em, sistematicamente, praticar bullying contra Leonardo, a impressão geral é que a cegueira não está em primeiro plano. Fala-se mais de bullying de forma geral e menos da cegueira de forma específica. (Jairo Marques, na Folha de S. Paulo, reclamou de um retrato muito estereotipado da cegueira.)
O foco central de Hoje eu quero voltar sozinho é a amizade entre três personagens e a descoberta da sexualidade. Uma típica quadrilha: Giovana amava Leonardo que amava Gabriel... mas, claro, nenhum deles está absolutamente ciente desses desejos, e a trama evolui a respeito das dúvidas, os enganos e desencontros dos três amigos. Trata-se da procura do que existe por trás das aparências - tema cinematográfico por excelência.
Estamos muito próximos de um certo gênero, o filme de adolescente, que no cinema brasileiro já produziu Menino do Rio (Antonio Calmon) ou Houve uma vez dois verões (Jorge Furtado). De qualquer maneira, não existe uma verdadeira tradição de filmes de adolescente no Brasil, à parte alguns maus exemplos como aqueles derivados de certa narrativa televisiva, filhotes da novela Malhação, que privilegiam a velocidade, as cores quentes, tudo em tom maior. E é justamente aí que Hoje eu quero ficar sozinho se sobressai: é um filme em tom menor, que aposta em cenas de amigos estudando no quarto e trocando impressões sobre música, que se preocupa com as conversas durante o caminho do colégio para casa, que mostra a relação com os pais à mesa de refeição, as conversas mais livres e cheias de curiosidade com a avó etc.
O longa de Daniel Ribeiro consegue nos aproximar de gente "normal", e não é outro o desejo de Leonardo: ser, apesar de sua deficiência física, apenas um garoto "normal". Talvez por isso a homossexualidade também é tratada sem muito alarde, com muita naturalidade e - por que não? - delicadeza.
O leitor pode se perguntar porque insistimos tanto na questão da cegueira e aparentemente nos "esquecemos" do homossexualismo. Talvez porque o próprio filme elabore a descoberta do desejo sexual sem grandes traumas. Em nenhum momento o homossexualismo é um problema para o filme. Nem os pais, nem os colegas fazem grande caso ao saberem da opção de Leonardo, e mesmo na última cena, o colega de sala que é "a pedra no sapato" do personagem parece derrotado e sem ação ao perceber que o casal gay não tem problemas em demonstrar seu afeto na presença dos demais colegas.
Na história do cinema, o cegos são, quase sempre, personagens de melodrama. A cegueira pode representar um sofrimento (como em Dançando no escuro), ou marcar um personagem que, sem se iludir com as aparências do mundo, parece mais sábio que os demais (o cego de A noiva de Frankenstein, no filme de 1935). Aqui, a cegueira não é nem sofrimento nem sabedoria. É apenas uma condição específica, que exige certos cuidados, e que gera uma série de tensões entre Leonardo e seus pais. A maneira como o filme trata o homossexualismo - como algo absolutamente natural - demonstra a opção de pensar seus temas na exata dimensão de seus personagens, sem tomá-los como exemplos ou modelos de uma situação mais ampla. As qualidades (e os problemas) de Hoje eu quero voltar sozinho vem dessa escolha.
O filme tem uma versão anterior, de curta-metragem, com os mesmos atores, intitulada Eu não quero voltar sozinho (2010). Disponível abaixo:
Aqui, o texto de Heitor Augusto, na Revista Interlúdio.
Aqui, o texto de Sérgio Alpendre, na Revista Interlúdio.
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