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09 April 2014
all is lost (2013)
Até o fim traz à mente algo do cinema de Werner Herzog, seja pelas semelhanças ou pelas diferenças. Dito de outra maneira, o filme de J. C. Chandor nos faz perceber as diferenças entre um espírito norte-americano tipicamente pragmático e um outro, alemão, tipicamente romântico, ambos colocados frente ao mundo natural.
Não é outro o tema de Até o fim, como não é outro o tema de grande parte da obra de Herzog: o homem frente à natureza (e seu poder de devastação). Para o cineasta alemão, a contemplação da fúria natural é algo que mostra a pequenez do homem. Traço típico do romantismo alemão, esse caminho leva quase invariavelmente a uma espécie de melancolia e, posteriormente, ao delírio e à loucura - sentimentos que poucos souberam expressaram tão bem quanto Klaus Kinski, ator preferido de Herzog.
Já o diretor americano nada tem de melancólico: frente à natureza, a letargia contemplativa deve ser evitada a qualquer custo. A palavra de ordem é "algo deve ser feito", e essa ideia conduz todo o filme de J. C. Chandor, que mostra um homem, em situação solitária e silenciosa, tomando atitudes, avaliando possibilidades, fazendo planos de sobrevivência. Algumas das pequenas características que definem um certo espírito norte-americano estão todas presentes: os manuais de "how to"(quando o personagem precisa aprender a usar um astrolábio), os gadgets (todos os instrumentos do kit de sobrevivência do bote salva-vidas) etc. Existe também, logo na primeira parte do filme, a concretização de uma espécie de terror muito contemporâneo: o isolamento tecnológico, representado pelo rádio que deixa de funcionar, deixando o personagem literalmente "à deriva" e, de certa maneira, em uma situação anacrônica. Trata-se do homem completamente solitário frente à natureza, sem comunicação com o resto do mundo, exceto pela velha "mensagem numa garrafa".
Na trama, Robert Redford é um navegador para quem, desde o primeiro instante, os problemas se acumulam - uma espécie de redemoinho de acasos fortuitos que o vai sugando rumo a uma morte iminente: um choque contra um contêiner, uma abertura no casco de seu barco, falha nos equipamentos de comunicação, uma tempestade, um naufrágio, tubarões, falta de comida etc. Redford, que contava 75 anos de idade na época do lançamento do filme, possui uma constante expressão dura e neutra - o rosto como uma terra devastada onde o público pode projetar suas próprias emoções. Seus olhos às vezes mais, às vezes menos arregalados, suas bochechas tensionadas ou relaxadas, a movimentação de seu corpo no barco, aparentemente à vontade - esse é o repertório do ator para construir esse "cavaleiro solitário" em meio ao oceano. A quase ausência de sua voz (à parte no prólogo, e em duas ou três outras breves circunstâncias) destaca a edição de som e uma contida (mas muito eficaz) trilha musical. A mensagem é clara: são as ações (e não os discursos) que conduzem a história (ou a "História").
Uma outra característica do filme é não revelar nada sobre a história pregressa desse homem: nada no barco (nenhuma fotografia, por exemplo) revela qualquer coisa de seu passado. Trata-se apenas de uma história de sobrevivência, ou, para se usar uma metáfora musical, uma trama de "pergunta e resposta": temos apenas as reações de Redford frente às adversidades que o atingem. O final também nada revela, e temos apenas um conto um tanto universal sobre a sobrevivência humana - a sobrevivência de um homem sem loucura, um "americano". Na verdade, esse personagem começa a assumir uma postura mítica, não tanto pelo argonauta que precisa retornar ao lar (o tema da Odisseia), mas pela referência ao personagem masculino mais tradicional do cinema americano, o caubói solitário, o homem de ação, o pragmático. A escolha de Redford para o papel faz ecoar toda uma tradição do cinema americano, de John Wayne e Humphrey Bogart a Clint Eastwood.
(Nesse sentido, outro ator da mesma geração de Redford, além de parceiro em vários filmes, Paul Newman, representaria outra tradição, a dos homens em crise, mesma seara de Marlon Brando e James Dean. Completando esse precário esboço de filiações, poderia-se pensar na família dos "perturbados", Jack Nicholson, Robert de Niro, Al Pacino, Steve Buscemi e nos "galãs", eternos bons moços, de Cary Grant (que também flertou com os perturbados) a Tom Hanks.)
O minimalismo do roteiro de Até o fim exige uma tour de force da direção, que constrói a trama, seus crescendos e suas pausas, com extrema precisão e sem maneirismos, mantendo uma proposta coerente do princípio ao fim: o mundo exterior é compreendido a partir de seu personagem protagonista. O personagem (e suas ações) é o centro em torno do qual tudo o mais orbita. Chandor tenta assim reencontrar o vigor de certo cinema americano que parece esquecido (com as honrosas exceções de um Eastwood, de um Carpenter, de um Gray).
J. C. Chandor já havia chamado a atenção em seu primeiro longa-metragem, Margin Call, sobre a imoralidade do mercado financeiro e a crise mundial, em que orquestrava um excepcional elenco em outro roteiro a princípio muito difícil de ser filmado. (Como representar altas e quedas de cotações de mercado, as minúcias de uma economia toda "virtual" e especulativa?) O resultado fica acima do esperado, mas não prepara o público para as qualidades de Até o fim. Assim como o já citado Clint Eastwood, Chandor é, para o bem e para o mal, um conservador. Em Margin Call, discorre sobre a importância da moralidade e da honradez, e, em Até o fim, na perseverança e no planejamento: todos os "bons e velhos" valores tão alardeados (e pouco realizados) pela "América". A partir desses mesmos valores, construiu-se a grande tradição do western (que depois passaria por intensa revisão).
É a se observar como Chandor continuará sua carreira, se se tornará uma espécie de paródia de si mesmo (a repetir sempre os mesmos bordões) ou se seu talento de encenador se aliará a uma espécie de autocrítica, a uma reflexão mais profunda sobre as contradições dos Estados Unidos da América. À título de comparação, não é outro o sentimento que conduz o último filme de James Gray, talvez o cineasta jovem que melhor saiba aliar a tradição do cinema americano com sua autocrítica. Por acaso, tanto The Immigrant, de Gray, quanto Até o fim tiveram suas premières mundiais no mesmo Festival de Cannes, em maio de 2013.
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