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14 November 2013

serra pelada (2013)


Serra Pelada, de Heitor Dhalia, parece resumir grande parte do cinema brasileiro da última década - especialmente, seus problemas.

Em se tratando de um filme sobre o garimpo, uma das questões centrais é o desejo de enriquecer, tornar-se uma empresa. E qual outra obsessão de grande parte dos cineastas (e dos jornalistas especializados, e da crítica) que o estabelecimento de um "mercado cinematográfico nacional"?

Os temas de Serra Pelada também não são exatamente originais. Quantos filmes da última década trataram de mudanças de classe social? Desde Cidade de Deus (o morador da famigerada periferia carioca que se torna fotógrafo e ganha emprego no jornal), passando por Meu nome não é Johnny (jovem de classe média que enriquece com o tráfico de drogas) e Bruna Surfistinha (garota de programa que ganha fama e dinheiro com seu livro). Além destes, existem outros, que os leitores podem se sentir livres para elencar. Arriscamos concluir que o Brasil de FHC e Lula (e Dilma) é o Brasil da mobilidade social (ou ao menos do desejo de mobilidade), e que o cinema capturou esse desejo em um sem número de filmes. Mesmo uma comédia como Carlota Joaquina (um emblema da retomada) parece tratar de uma princesa que "caiu" socialmente, sendo obrigada a sair da Europa para viver nos trópicos.

O desejo de "mudar de vida" aparece em Serra Pelada dividido entre seus dois personagens centrais: um, ansioso para garantir destino melhor para sua família; outro, com uma ambição desmesurada pelo poder. O filme tenta nos identificar com ambos, mas termina por nos distanciar deste último. Os dois protagonistas parecem sintetizar tópicos comuns ao noticiário: o agressivo Juliano representa o enriquecimento ilícito (como no mensalão ou em qualquer outro escândalo de corrupção, de tucanos a petistas, de fiscais a coronéis), enquanto o mais intelectual Joaquim representa um caminho "fácil" e honesto de ganhar dinheiro (que lembra a auto-ajuda financeira ou economia doméstica de algum telejornal vespertino, e que envolve doses de planejamento, de autocontrole, de gestão empresarial aplicada à vida cotidiana etc.).

Na verdade, a oposição entre os dois personagens é esquemática: o enriquecimento no Brasil parece caminhar entre o lícito e o ilícito, entre o trabalho honesto e o "jeitinho". O filme demonstra isso em sua primeira parte, onde são o pragmatismo de Joaquim e a truculência de Juliano que, juntos, garantem os primeiros sucessos da empreitada no garimpo. Esse lugar entre o lícito e o ilícito é uma espécie de lei em um espaço fora-da-lei, e se lembrarmos do western, a mesma equação pode ser vista no clássico de John Ford, O homem que matou o facínora: a lei de um James Stewart precisa da força de um John Wayne. Separados, todas as tentativas são vãs. Mas, no filme de Dhalia, essa aparente contradição se torna uma separação radical: Juliano é "selvagem" e sexual, enquanto Joaquim é civilizado e (em grande parte do filme) casto. Se quisermos, a velha e antiquada distinção entre "emoção"e "razão". Toda complexidade (que é a força da obra de Ford) é jogada para baixo do tapete.

A primeira parte de Serra Pelada também abusa de certo didatismo a respeito de uma situação alheia a grande parte do público: a voz over de Joaquim explica passo a passo do funcionamento do garimpo, em um procedimento praticamente idêntico ao de Cidade de Deus, em que o protagonista explica o funcionamento do tráfico de drogas. É uma espécie de resumo informativo, um "infográfico" (o termo soará familiar aos leitores da Folha de S. Paulo) do garimpo. Não demorará também para que as situações do garimpo se aproximem daquelas narradas em Cidade de Deus: a necessidade de controlar todas as bocas do tráfico no filme de Meirelles se transforma, em Dhalia, no controle de todas as áreas de garimpo. Os negócios ilícitos e a imposição pela força se tornam regra. E, em meio a tudo isso, surge uma espécie de femme fatale desprovida de ambiguidade.

A personagem de Sophie Charlotte é uma espécie de objeto disputado pelos homens poderosos do garimpo. Em seu tratamento às mulheres, o filme flerta com uma espécie de exaltação (e exploração) do sexo como algo exótico: corpos de mulatas em trajes sumários dançam em boates que transbordam de elementos kitsch e iluminação violeta, verde e amarela, com especial atenção em planos próximos de derrières (o que pode ser traço estilístico, questão de autoria, já que se trata do mesmo diretor de O cheiro do ralo).

As primeiras cenas, que deveriam, em tese, dar sustentação ao restante do filme, são dramaticamente insuficientes. A conversa entre Joaquim e a esposa, onde ele conta a decisão de tentar a sorte no garimpo, é meramente informativa e parece não sustentar a posterior "saudade de casa" que vai se abater sobre o personagem. A apresentação da amizade entre os dois protagonistas se dá em uma cena rápida, uma carona em um caminhão, que termina em um plano, um abraço na boleia - apenas depois, no texto da voz over, ficamos sabendo que trata-se de uma amizade muito antiga. Mas tudo isso é apenas "informado" ao público, e não aparece de maneira contundente em nenhum outro trecho do filme, exceto no final (quando, justamente por não ter sido construída solidamente, passa a soar falsa). Dhalia parece dar muita atenção à reconstituição de época e ao trabalho de arte, mas deixa em segundo plano a profundidade dramática. E, falando em arte, até esse quesito tem problemas, como quando um imenso mapa do Estado de São Paulo aparece ao fundo de uma sala de escritório em meio ao garimpo de Serra Pelada - algo que não seria exatamente inverossímil, mas que se mostra talvez um pouco "fora do lugar".

"Fora do lugar" também são várias das escolhas do filme, que parece crescer devido ao trabalho de alguns de seus atores. Wagner Moura se destaca pela complexidade de suas expressões faciais, por conseguir construir um personagem misterioso e imprevisível, uma espécie de máscara desse Brasil que muda de classe social, algo indefinido entre o "homem comum", o "homem de bem" e o "chefe de quadrilha criminosa". Júlio Andrade e Matheus Nachtergaele são precisos e econômicos, apesar de seus personagens serem, como grande parte do filme, um tanto esquemáticos. Juliano Cazarré se revela um ator nascido para o cinema: seu corpo, sua presença, seu rosto, seus movimentos parecem preencher a tela, mas seu papel aqui necessitaria de mais matizes e ambiguidades, exatamente o que encontramos no desempenho de Wagner Moura, que carrega o filme de ambiguidade.

Serra Pelada parece querer realizar o sonho de um "grande filme" (herança e reflexo de um sentimento comum à época retratada, o "Brasil grande" sonhado pelos governos militares). Um grande épico sobre um momento da história brasileira, sendo que alguns dos temas mais privilegiados no cinema brasileiro contemporâneo financiado por renúncia fiscal são os que têm a chancela da História (muitas vezes da História "Oficial") para existir, sejam os filmes de Sérgio Rezende, sejam os de Jayme Monjardim... Outro filão muito profícuo, que de alguma maneira dialoga com este, é o das biografias musicais. Mas Serra Pelada termina sendo quase uma cópia de um certo cinema americano, como se Dhalia quisesse homenagear (ou macaquear) O poderoso chefão (na cena do assassinato na porta da igreja, mostrada em montagem paralela com uma oração à mesa) ou Scarface, na versão de Brian de Palma (na cena em que Juliano Cazarré, em uma boate, pede para os músicos seguirem repetindo a mesma música). Mas esses filmes trabalham nas contradições do capitalismo e do sonho de acúmulo de capital. As contradições entre ter uma família (que defende certos valores) e prosperar (com valores às vezes diametralmente opostos). As contradições entre a velocidade do sonho de ascensão social e a velocidade da queda (especialmente, como mostra o filme de Brian de Palma, se a ascensão se dá no mundo do crime).

O filme de Dhalia parece escapar dessas contradições e seu final é especialmente conservador ao premiar os bons e punir os maus, ao possibilitar a redenção para o personagem condenado, ao colocar de maneira estanque as questões envolvendo dinheiro e moral - o que seria um prato cheio para se pensar a realidade brasileira.

Serra Pelada parece transbordar de pretensões, mas são essas mesmas pretensões que revelam as deficiências do filme e enfatizam a distância entre o que se pretende e o que de fato se realiza. Conseguimos perceber problemas comuns a outros projetos do cinema brasileiro e a repensar o que de fato queremos e, talvez mais importante, o que podemos ter (em termos de cinema e em termos de país).

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