Anora é um filme fraturado em duas partes: na primeira, prevalece o sonho e o hedonismo. É quando Ani, durante seu trabalho como dançarina erótica e eventual prostituta em uma casa de strip-tease em Nova York, conhece o jovem Vanya, filho de bilionários russos. De forma perdulária, entre uma festa e outra, uma cena de sexo e outra, o relacionamento entre ambos vai se estreitar cada vez mais. Até que, na segunda parte, teremos o reverso do sonho, quando um sentimento de opressão e violência estará sempre presente, ora explícito, ora subterrâneo.
Em ambos os momentos do filme, Sean Baker demonstra seu gosto pela velocidade. Na primeira parte, as coisas não demoram a acontecer. Como se a narrativa, ainda que não seja atropelada ou pula etapas, tomasse atalhos. Tudo acontece sem espera, sem demora. Poderíamos dizer: sem maturação. Assim, torna-se marcante o pedido de casamento de Vanya, que acontece talvez cedo demais — e, depois da improvisada cerimônia em Las Vegas, e durante a segunda parte de Anora, podemos ter a sensação de que é tarde demais. Tarde demais para voltar atrás, tarde demais para esperar que a relação entre Ani e Vanya amadurecesse (se é que amadureceria), tarde demais para evitar as consequências dos atos realizados de forma impulsiva e impensada.
Na segunda parte do filme, a velocidade se encontra menos no desenrolar da narrativa (há muita espera durante a busca pelo paradeiro de Vanya) que nos gestos e nas falas do elenco. Há embates verbais que, inegavelmente agressivos, soam também divertidos. Há muita comédia física, com os personagens entrando em brigas e disputas corporais, se acidentando e inclusive vomitando — o que coloca o filme no tênue limite entre o cômico e o patético, entre o grotesco e o hilário. Velocidade que condiz com certa tradição do cinema nova-iorquino e seu gosto pelos personagens noturnos (de Cassavetes e Scorsese aos irmãos Safdie, passando pela verborragia de Woody Allen), mas que remete também às screwball comedies (ou comédias amalucadas) da era de ouro de Hollywood, sendo Levada da breca (Bringin' Up Baby, Howard Hawks, 1939), com Katherine Hepburn e Cary Grant, um dos exemplos mais representativos.
O fato do ponto de vista narrativo em Anora ser o mesmo da personagem central apenas reforça a sensação de fratura. Se, durante a primeira parte do filme, parte da plateia pode ser levada, talvez ingenuamente, a acreditar que Vanya, ainda que infantil e irresponsável, pode ser também sincero e quiçá bondoso, é preciso dizer que a própria Anora é muito esperta e a todo tempo mede os possíveis ganhos de sua situação. Talvez menos por caráter que por necessidade, menos por calculismo que por sobrevivência, ela não deixa de ser uma arrivista que, após conhecer Vanya, se deixa seduzir e passa a acreditar que seu momento finalmente chegou, que é sua hora de também aproveitar todos os prazeres que a riqueza pode proporcionar. Descobriremos junto a Anora o quanto ela pode estar iludida. Junto a ela, sentiremos sua esperança e sua decepção.
A esperança possui embasamento. As primeiras cenas, que ilustram algumas posições eróticas realizadas por dançarinas como Anora, indicam um acúmulo: como se, depois de tanto rebolar (literalmente), a personagem merecesse sua recompensa (ou ao menos um salário justo, que ela reclama em dado momento). O mote de fundo do filme de Sean Baker — e, ao mesmo tempo, um dos pilares do protestantismo estadunidense (e da meritocracia neoliberal) — diz que o destino premiará quem trabalhar duro. Mote que é posto em dúvida todo o tempo, seja pela inveja de uma colega de boate, seja pelas atitudes de Vanya, seja pela falta de solidariedade que quase todos os personagens (à exceção de Igor) demonstram pela situação de Anora, ela mesma presa nesse conto de fadas às avessas, em que a gata borralheira, após ser premiada com um par romântico — e seu cartão de crédito encantado — precisa retornar do sonho rumo à realidade.
O grande tema de Anora é o poder e as inúmeras disparidades entre aqueles que o tem e aqueles que não o tem. Ani imaginava-se ganhadora de um ingresso no mundo dos poderosos, mas não percebeu que mesmo Vanya estava mais para subalterno — uma classe especial de subalterno, devemos admitir — que para patrão. Por outro lado, os quase-gansgters, que praticamente sequestram Ani para que juntos encontrem o foragido Vanya, sabem muito bem seu lugar dentro da hierarquia do poder. Eles são duros e violentos com Anora, mas sabem que tanto ela quanto eles são peças menores no jogo dos poderosos: nenhum tem condições de questionar ou confrontar os bilionários sem sofrer graves consequêncas. Sabem que o melhor a fazer é apenas obedecer — e torcer para serem poupados de alguma eventual represálisa, justificada ou não.
Os bilionários se apresentem como a realeza dos novos tempos, para quem regras e leis não funcionam — ou, se funcionam, o fazem de maneira distinta. Dentro da narrativa do filme, a trajetória de Ani envolve compreender o mundo em que alguns podem tudo, enquanto outros, muito pouco. Um mundo em que o valor protestante da prosperidade através do trabalho, quando se realiza, não acontece de maneira justa, nem para todo mundo, nem da mesma maneira, apesar dos esforços individuais. Um mundo em que, além do conto de fadas do príncipe encantado, é ainda mais urgente desmistificar um outro conto de fadas, que serve como uma das bases de sustentação do status quo e da manutenção das disparidades sociais (quando colocadas apenas na conta do empenho individual).
A cena final é complexa: ao mesmo tempo retorno ao lar e reconhecimento por Ani de seu lugar social (e do tipo de par romântico possível para ela), é também uma volta a seu antigo métier, à necessidade de trabalhar para garantir sua sobrevivência. O envolvimento entre os dois personagens dentro do carro, em uma relação que se equilibra entre a paixão, o desejo, a obrigação profissional e a atividade laboral, testa os limites entre a situação íntima e as obrigações contratuais (e mercantis), não isentas de cálculo ou interesse. Pela segunda vez, Anora recebe sua aliança de casamento, mas aqui o sentido é totalmente inverso ao da primeira vez. De porta de entrada a um mundo de sonho e hedonismo, se transforma em mero souvenir, uma espécie de prêmio de consolação. Anora cai em lágrimas. Talvez porque saiba que, no mundo em que vive, é impossível deixar intactas partes de si mesma como a intimidade e o amor. Pois são esses os seus produtos, é isso que ela vende para garantir seu sustento.
Ainda que não seja necessário considerar a prostituição uma profissão moralmente errada (e o filme em nenhum momento assume tal postura), não podemos deixar de notar o alto custo emocional e a falta de perspectivas (realistas, no caso) enfrentados pela personagem.
Em Anora, como diz o ditado, quem pode, manda. Quem não pode, obedece. Na primeira metade desse filme fraturado, a personagem imagina que também ela pode chegar a uma posição de mando (e assim encontrar fartura e conforto). A segunda parte vai contradizê-la. Não sem graça e sutileza. Não sem Sean Baker demonstrar um delicado equilíbrio entre o trágico e o cômico. Ao mesmo tempo, escancarando a condição da personagem de forma inequívoca e contundente. Sensação bastante agridoce, que compartilhamos com a personagem central.
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