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25 November 2020

mulher oceano (2020)

 


Cada época histórica tem seus próprios temas e obsessões. Quando notados, revelam muito do que atende pelo pomposo termo Zeitgeist. Quando despercebidos, são reduzidos a meros clichês: temas e figurações tão repisados que parecem esgotados de sua capacidade de revelar algo sobre seu tempo.

Um olhar desatento poderia encarar Mulher oceano, a estreia na direção da experiente atriz Djin Sganzerla, como um filme de clichês, uma colagem de cenas e situações vistos em filmes anteriores: da cena de karaokê de Encontros e desencontros (Lost in Translation), de Sofia Coppola, às mergulhadoras de Ama-san, documentário de Cláudia Varejão; dos filmes urbanos cariocas (o pai empobrecido a esbanjar dignidade; a violência de uma demissão eminente em frente ao cenário de cartão-postal da Baía de Guanabara; a vida noturna com os amigos) à multiplicação de identidades de A dupla vida de Véronique (La double vie de Véronique), de Krzysztof Kieślowski.

Mas, ainda que muito pareça estar sendo revisto, há também uma sensação contrária. Como se, ao revisitar situações conhecidas, fosse possível senti-las como na primeira vez. A personagem da mulher-viajante representa isso: totalmente conectada com as pessoas através do celular e do computador enquanto demonstra sincero interesse pelo que lhe é diferente, ela tenta recuperar, nas coisas e pessoas que encontra em seu caminho, a força do primeiro olhar, o sentimento de descoberta.

Mulher oceano é, desde seu título, um filme feminino, que reflete outro clichê: a dualidade (ou multiplicidade) associada ao arquétipo feminino. A(s) personagem(ns) de Djin Sganzerla aparece(m) ora no Brasil, ora no Japão. Ora preocupada em escrever um livro, ora em fazer uma travessia no mar a nado. Ora lidando com os cacos de seu passado, ora negociando com as exigências do trabalho em uma empresa. Duas mulheres, que podem ou não ser a mesma pessoa — isso pouco importa. O que interessa é o caminho subterrâneo (melhor dizer “submarino”) que conecta essas duas figuras: toda uma ideia de “profundidade” e de coisas ocultas. Mas também, e de maneira mais prosaica, toda uma ideia de montagem cinematográfica.

Dizer que o Rio de Janeiro poderia ser Tóquio ou que o Oceano Pacífico poderia ser o Atlântico seria retomar ainda outros clichês. Apesar de todas as diferenças (que não desaparecem), Mulher oceano trabalha na criação de aproximações, ecos, espelhamentos e desdobramentos entre seus elementos. No país oriental, uma ama-san afirma que, quando ao se perceber presa durante um mergulho, basta soltar a corda. O difícil, segundo ela, é lembrar-se disso no momento necessário, quando surgem o medo e o desespero. A corda — em seu sentido fílmico, seria a montagem, liame entre uma imagem e outra, entre uma ideia e outra.

Essa “corda” que reúne todas as imagens é mais que uma ideia de “feminino” e mais que o corpo feminino que organiza o filme (à frente e atrás das câmeras). Tal “corda” é justamente o tal Zeitgeist, o espírito de um tempo obcecado pela ideia de “estar conectado” — seja pela tecnologia (as telas), seja com a natureza (o mar), seja consigo mesmo. Se, na narrativa do filme, a imagem de Djin Sganzerla atende por dois nomes distintos (o que indicaria duas personagens), as fotografias de seu corpo nu, conforme seu pedido, devem permanecer anônimas. Um corpo sem nome e sem identidade ou, antes, um corpo em busca de um nome e de uma identidade. Mulher oceano é, em mais de um sentido, um filme sobre aprender a soltar as cordas, sobre libertar-se de identidades impositivas, sobre permitir-se ser outras pessoas. Seja durante um mergulho, seja na busca pela escrita de um romance, seja na entrega do corpo ao olhar do outro.

Quem seria esse “outro” no caso da delicada cena da sessão fotográfica? Claro que o personagem do escritor japonês, seu guia por terras estrangeiras. Mas também a câmera tateante, operada por André Guerreiro Lopes, constante parceiro artístico (e de vida) da diretora. E, além disso, também de um deslocamento, similar ao que acontece no interior da narrativa: tem-se a diretora Djin que observa a atriz Djin e que percorre seu próprio corpo em busca de talvez redescobrir-se, em busca de talvez reinventar-se. O próprio corpo (e a própria identidade) como territórios desconhecidos.

Nesse sentido, o espelhamento entre a personagem da nadadora e a da escritora supera um mero jogo de construção pós-moderna, uma espécie de “quem imagina quem”, para alcançar uma alteridade reflexiva, preocupada com as estranhezas (e delícias) de ser quem se é. Sim, é preciso perder-se para se reencontrar. Para poder renascer, é preciso lançar-se ao fundo do mar sob o risco de não mais voltar.

Após anos dedicados ao ofício de atriz, no teatro e no cinema, Mulher oceano mostra Djin Sganzerla a se reinventar diretora. O caráter de novidade e descoberta presente em vários momentos, e que poderia ser entendido como algo banal em filmes de estreia, é na verdade muito mais raro do que se imagina, bem como mais difícil do que parece de ser atingido. Em Mulher oceano, os momentos de hesitação são superados pelo entusiasmo com que coisas e pessoas são observadas. Vemos aqui a diferença entre os tantos primeiros filmes que parecem afirmar “eu posso filmar” e um outro que afirma, simplesmente: “eu vejo”.

À viajante em terra estrangeira, resta apenas isso: a possibilidade de ver antes de tentar compreender o que a rodeia. A nadadora, pelo contrário, parece nunca enxergar as evidências, sendo sempre enganada por sua intuição, seja na cena da “demissão”, seja na dos testes ergométricos etc. Uma espécie de aprendizado parece separar uma e outra personagem. Como se uma estivesse ainda prestes a romper as cordas enquanto a outra já tivesse feito isso.

Haverá talvez quem veja em Mulher oceano um filme sem grande novidade, o que não deixa de ser verdadeiro. Mas sua grande força é justamente um olhar atento sobre aquilo que aparentemente sempre estive aí. Olhar que parece transformar o corriqueiro em inusitado e o inusitado em corriqueiro.

Entre as velhas mergulhadoras japonesas, algumas por vezes se esquecem de como retornar à superfície. Esse delicado instante entre a vida e a morte, entre as profundezas do oceano e sua superfície, é o difícil território que o filme de Djin Sganzerla parece habitar.

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