Morreu Jean-Claude Bernardet.
Belga nacionalizado brasileiro, escreveu crítica de cinema para o Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo. Em 1965, participou (com Paulo Emilio Salles Gomes, Lucila Ribeiro Bernardet e Nelson Pereira dos Santos) da criação do primeiro curso de cinema em uma universidade pública no Brasil. Marco tão importante quanto fugaz, já que o curso da Universidade de Brasília (UnB) foi fechado nesse mesmo ano por ordem do governo militar chefiado pelo general Castelo Branco. Três anos mais tarde, Bernardet começou a lecionar na Universidade de São Paulo (USP), onde permaneceu até se aposentar como professor emérito e ajudar a formar gerações de estudantes, realizadores, críticos, pensadores...
Sua produção textual é profícua e dispersa. Mateus Araújo fala em "uma massa numerosíssima de textos, que inclui uma vintena de livros, em solo ou em colaboração, e mais de 700 artigos". Brasil em tempo de cinema, escrito no calor dos acontecimentos (a primeira edição, pela Paz e Terra, é de 1967), causou polêmica ao assumir a crítica ao Cinema Novo. Seriam, na visão de Jean-Claude, cineastas de classe média tentando se apropriar de discursos calcados nas ideias de "povo" e de "popular". Em Cineastas e imagens do povo (Paz e Terra, 1985; Companhias das Letras, 2003), Bernardet volta às relações entre certo período histórico e a noção de "popular", desta vez com foco em documentários produzidos nas décadas de 1960 e 1970. Sobre o tema, lançaria também (com Maria Rita Galvão) O nacional e o popular na cultura brasileira: cinema – repercussões em caixa de eco ideológica.
O ensaio Cinema brasileiro: propostas para uma história (Paz e Terra, 1979; Companhia das Letras, 2009) — lançado em livro após ser rejeitado para uma antologia publicada na França sobre o cinema da América Latina — junto de Historiografia clássica do cinema brasileiro: metodologia e pedagogia (Annablume, 1995) repensam os métodos para se pensar a história do cinema em nosso país. Em resumo, impõe-se a necessidade de uma perspectiva própria, distinta das utilizadas na Europa ou nos EUA, o que acaba significando deslocar o longa-metragem de ficção de sua posição central para que sejam contempladas outras formas fílmicas — o institucional, o filme de família, o documentário sob encomenda, as diversas formas dos chamados filmes "de cavação". Uma senda depois seguida por muitas e muitos que se dedicaram a pesquisar o cinema nacional.
Como ficcionista, publicou Aquele rapaz (1990) e, em coautoria com Teixeira Coelho, Os histéricos (1993) e Céus derretidos (1996). Sua obra ensaística e autobiográfica inclui ainda A doença, uma experiência (1996), O corpo crítico (2021) e Wet mácula (com Sabina Anzuategui, 2023). De uma ou outra maneira, essas conjunto de obras lida com sua homossexualidade, o diagnóstico de HIV no início dos anos 1980, a perspectiva da morte e a degeneração física. No caso de O corpo crítico, ao decidir abandonar o tratamento de um câncer de próstata, Bernardet faz a crítica à desumanização do sistema médico-hospitalar e, em um gesto profundamente político, narra os motivos que o fizeram fazer valer sua vontade em relação a seu próprio corpo — e sua finitude. Deixa ainda um livro inédito, Viver o medo: uma novela pornô-gourmet, a ser publicado pela Companhia das Letras.
Foram mais de quatro décadas como portador do HIV mas, como gostava de repetir, Bernardet seguiu vivo. Após preparar-se para a morte (e não morrer), buscou novas maneiras de seguir existindo. Roteirista, com Luis Sergio Person, de O caso dos irmãos Naves (1967), também escreveu três filmes de Tata Amaral: Um céu de estrelas (1996, com Roberto Moreira), Através da janela (2000, com Fernando Bonassi) e Hoje (2011, com Rubens Rewald e Felipe Scholl). Dirigiu filmes sozinho (São Paulo: sinfonia e cacofonia, média, 1996) ou com os parceiros João Batista de Andrade (de quem também foi assistente em Gamal, o delírio do sexo, 1969), Rubens Rewald (#eagoraoque, 2020) ou Fábio Rogério (Cama vazia, curta, 2023, e A última valsa, curta, 2024, este exibido na 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes). De maneira mais destacada, durante as últimas décadas, Bernardet fez-se ator ao lado de realizadores como Kiko Goifman (FilmeFobia, 2009), Cristiano Burlan (Hamlet, 2014; Fome, 2015; Antes do fim, 2017, entre outros), Claudia Priscilla e Pedro Marques (A destruição de Bernardet, 2016) e Fábio Rogério.
Em qualquer uma de suas personas (professor, ator, cineasta, escritor ou intelectual), foi de rara inteligência. Um espírito exigente e constantemente insatisfeito. Inquieto. Sempre em movimento. Belga que se tornou brasileiro, crítico que se tornou professor, intelectual que se tornou ator, de uma sexualidade em permanente estado de descoberta. Em constante autocrítica, sempre se questionando (e a todas e todos ao seu redor), sempre "destruindo" suas certezas e sua autoimagem (como no filme de Claudia Priscilla e Pedro Marques) apenas para depois se reconstruir de novas maneiras.
Bernardet detestaria o epíteto "intelectual inquieto", não pela inquietude, mas por lhe desagradar que, a partir da palavra "intelectual", se pudesse imaginar alguém isolado da vida real, fechado na torre de marfim. Algo em tudo distinto de Jean-Claude, que amava as ruas, a deambulação e o acaso. Para ele, as ideias levavam à ação e, assim, poderiam ser confrontadas por corpos reais, o seu próprio e aqueles do mundo. Um pensamento vivo e atento ao momento presente. Ação e pensamento que se realizam no agora e que seguem sem parar, em perpétua reinvenção.
Em uma noite fria de sexta-feira, em seu apartamento no Copan — apesar da visão bastante comprometida — seguia escrevendo. Súbito, percebeu seu fluxo de ideias bruscamente interrompido: um acidente vascular cerebral. Ainda consciente, insistiu em não ser levado ao hospital. Contra sua vontade, foi socorrido e levado ao Samaritano, em Santa Cecília, onde faleceu horas mais tarde, às 4h30 da manhã do sábado, 12 de julho, poucas semanas antes de completar 89 anos.
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