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21 April 2025

milton bituca nascimento (2024)

 

O sucesso ou fracasso (essas palavras tão vazias) de um filme não são capazes de alterar o lugar que Milton Nascimento ocupa na cultura brasileira. Bituca não precisa que o cinema celebre sua obra, que vive (viverá) através dos diferentes intérpretes que a cantaram (e cantarão), que mora no imaginário das gerações que a ouviram (e a ouvirão), no Brasil e além.

Recentemente, ao menos dois documentários sobre o cantor e compositor chegaram aos cinemas: Nada será como antes: a música do Clube da Esquina (Ana Rieper, 2024) — sobre a formação da turma que mais tarde gravou o clássico álbum de 1972 —, e Milton Bituca Nascimento, de Flávia Moraes, que tem como ponto de partida a turnê "A última sessão de música", anunciada como a despedida de Milton dos palcos, aos 80 anos de vida (hoje 82) e 60 de carreira. Com acesso aos ensaios, camarins e ao palco, impressiona a quantidade de material disponível. O que não diminui (e talvez acentue) certa falta de rumo, perceptível desde seus primeiros minutos, quando a montagem alterna trechos da turnê, cenas recriadas com um ator mirim interpretando Milton criança, diferentes depoimentos sobre o artista, além de uma narrativa em voz over que oscila entre a hagiografia, o clichê e a uma poesia forçada, abusando do decalque de (alguns diriam "referências a") trechos de letras de Milton e seus parceiros. A qualidade do texto fica patente quando nem a narração de Fernanda Montenegro consegue salvá-lo do tom de brainstorm publicitário, com suas platitudes, suas frases feitas, suas perguntas retóricas, tudo envolto em um papel de embrulho com a tinta da homenagem.

A quantidade (e qualidade) dos entrevistados salta aos olhos: no Brasil, o suprassumo dos músicos da geração mais próxima a Milton: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, João Bosco, Djavan, Ivan Lins, Simone. Entre os internacionais, Quincy Jones, Wayne Shorter, Herbie Hancock, Paul Simon, Pat Metheny, a portuguesa Carminho, entre outros. Nem lá nem cá, temos Sérgio Mendes, músico brasileiro mais conhecido (e reconhecido) nos EUA que em seu próprio país. Para completar, os companheiros de Milton da época do álbum "Clube da Esquina": Lô e Márcio Borges, Beto Guedes, Toninho Horta, Wagner Tiso. E também músicos da banda de "A última sessão de música" e de gerações mais jovens, como Esperanza Spalding, Criolo, Mano Brown, Djonga, Maria Gadu. Ao que parece, ninguém se negou a dar seu depoimento para um fime sobre Bituca.

Tamanha quantidade obriga o documentário, com suas duas horas de duração, a se transformar em um imenso videoclipe, recorrendo inclusive ao split screen (a telas dividida) para dar conta de acomodar tanto material. Mas uma maior duração, ou mesmo sua hipotética transformação em uma série, dificilmente resolveria a falta de rumo sentida desde os primeiros momentos da projeção. Afinal, do que trata Milton Bituca Nascimento? Entre tantas respostas possíveis, se destaca a tentativa de monumentalização de um artista, com todos os problemas inerentes ao processo. Por exemplo, a música, que poderia estar no centro de tudo, aparece sempre pela metade, às vezes como detalhe ou mera ilustração.

Nenhuma das canções executadas é ouvida em sua integridade, e a interrupção parece jogar um balde de água fria no espectador que talvez gostasse de capturar algo mais dos shows de despedida de Bituca. Assim, é preciso se contentar com as entrevistas e a narração em voz over, que tentam construir, menos que ideias, consensos, figuras de linguagem que, após serem insistentemente repisadas, terminam esvaziadas de significado e transformadas em lugares-comuns. Assim, metade da plêiade de entrevistados afirma que Milton (e sua música) seriam "inclassificáveis" — mas qualquer tentativa de pensar de maneira mais aprofundada o que isso quer dizer acaba se perdendo no caminho. Ali, alguém fala no uso inusitado das diatônicas (mas o termo é demasiado técnico para o público leigo e o pensamento não se conclui). Depois, Caetano Veloso (sempre ótimo em sintetizar ideias em expressões contundentes) é quem se sai melhor ao afirmar que "a melhor explicação de Milton é o mistério" — o que poderia resumir tudo, mas, no fundo, não resume nada.

Com tanto material à disposição, a sensação de excesso convive com a impressão de que o documentário poderia render muito mais. E efetivamente rende, em um de seus melhores momentos, quando Criolo e Mano Brown recitam, suas vozes reunidas na montagem, a letra de "Morro velho":

No sertão da minha terra, fazenda é o camarada que ao chão se deu
Fez a obrigação com força, parece até que tudo aquilo ali é seu
Só poder sentar no morro e ver tudo verdinho, lindo a crescer
Orgulhoso camarada, de viola em vez de enxada

Filho do branco e do preto, correndo pela estrada atrás de passarinho
Pela plantação adentro, crescendo os dois meninos, sempre pequeninos
Peixe bom dá no riacho de água tão limpinha, dá pro fundo ver
Orgulhoso camarada, conta histórias pra moçada

Filho do senhor vai embora, tempo de estudos na cidade grande
Parte, tem os olhos tristes, deixando o companheiro na estação distante
Não esqueça, amigo, eu vou voltar, some longe o trenzinho ao deus-dará

Quando volta já é outro, trouxe até sinhá mocinha prá apresentar
Linda como a luz da lua que em lugar nenhum rebrilha como lá
Já tem nome de doutor, e agora na fazenda é quem vai mandar
E seu velho camarada, já não brinca, mas trabalha.

A inflexão da voz e o gestual dos artistas demonstram o reconhecimento, em seus próprios corpos, do racismo denunciado na letra. Ambos sabem que poderiam ser eles mesmos a metade dos "velhos camaradas" que já não brinca, mas trabalha. A negritude de Milton (e a forma como esse traço ancestral aparece em sua obra) surge neste momento como chama viva a alimentar músicos de uma geração mais jovem. Aqui, não há um clichê vazio (como em vários momentos da narração ou no apelo a certo elemento "inclassificável" na obra do compositor), apenas o apontamento de algo específico: como pessoa negra, Milton enfrentou preconceitos. Seu sucesso e influência ajudou outras pessoas negras a seguirem suas vocações musicais, contrariando a situação retratada em "Morro velho" — o fato de que, ainda que a infância pareça apagar as diferenças, a cor da pele ainda determina quem pode, de um lado, estudar e ter nome de doutor e, do outro, a quem está destinado o trabalho manual na terra da fazenda.

A arte de Milton pode ser "inclassificável" para os limitados (e limitantes) rótulos comerciais das lojas de discos e das plataformas de streaming, que hesitam em colocá-la na prateleira do jazz, da world music ou da MPB. Na verdade, sua obra possui imensa força estética e política, de alta voltagem poética, coisa que aparece em sua plenitude neste trecho do documentário. Coisa que não precisa ser "classificada", mas que pode ser pensada, sentida, debatida.

Ao invés de tentar construir uma estátua em praça pública, o filme de Moraes ganharia ao mostrar como a música de Milton é capaz de provocar reações como as de Criolo e Mano Brown. Uma música entranhada, de diferentes maneiras, no imaginário e na percepção de quem tem (e terá) o privilégio de conhecê-la, o que pode implicar seja na denúncia do racismo estrutural, seja em uma percepção mística ou religiosa, seja na busca de uma identidade mineira, seja em sua inesgotável inventividade harmônica e melódica etc.

Menos homenagem hagiográfica (e mais mergulho nos detalhes e insterstícios da própria obra) e o filme perderia a pompa, o caráter oficialesco, a aparência de monumento público, ganhando, por outro lado, a possibilidade de mergulhar no universo das canções de Milton Bituca Nascimento.

O cinema não será capaz de modificar a importância dessa obra. Mas Milton Nascimento, sua vida, sua arte e seu legado ainda estão por merecer um filme que se arrisque, apesar de toda a dificuldade, a enfrentá-los de frente.

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